quarta-feira, 24 de agosto de 2011

É verdade que o português é uma das línguas mais difíceis no mundo?

Vou mudar o tema do blog por um instante. Vou falar de uma paixão minha que muitos não conhecem: ciências da linguagem (tenho mestrado em linguística). Vieram me fazer essa pergunta dia desses. É uma afirmação bem frequente a de que o português é uma das línguas mais difíceis do mundo. Isso é verdade? Eis a resposta.

Não. Primeiro, vou levantar questões que são levadas em conta para se afirmar que uma língua é difícil, e mostrar que o português não chega nem perto. Depois, mostrar que nem mesmo essas questões dão conta de achar qual língua é difícil e qual é fácil.

Em primeiro lugar, quando se fala em língua complexa, a questão que se faz é: em que aspecto? As línguas têm diversos aspectos, tais como fonologia, morfologia, sintaxe, léxico etc. Vamos levantar alguns desses aspectos e alguns argumentos usados para dizer que o português é uma das línguas mais complexas do mundo:

Morfologia - o português tem conjugações verbais, formas plurais e singulares, formas masculinas e femininas dos nomes, bem como aumentativos e diminutivos.
Por esses argumentos, a língua portuguesa fica longe de ser das mais complexas. Enquanto um substantivo tem duas formas no português (singular e plural), ele tem nove formas em russo, com as declinações. Na língua inuit, dos esquimós do Alaska, Canadá e Groenlândia, existem mais de 800 formas infinitivas para cada verbo, contra duas no português e mais de mil formas conjugadas, contra dezenas no português.

Fonologia - a língua inglesa possui muito mais fonemas tanto vocálicos quanto consonantais que o português. Existem línguas tonais, que são aquelas em que o tom de voz muda completamente o sentido de uma sílaba. No chinês, você, com a mesma sílaba, pode dizer mãe, cavalo ou outras três coisas diferentes, apenas mudando o tom.

Léxico - um dos argumentos usados é que o português tem palavras que podem significar muitas coisas diferentes. Essa é a maior falácia de todas. Não que não seja verdade... mas não é exclusividade do português. Toda, absolutamente toda língua natural, sem nenhuma exceção, tem essa característica. Uma palavra que pode significar várias coisas, uma coisa que pode ser dita através várias palavras. É a noção de significado e significante de Saussure, que, unidos, formam um signo linguístico (esse conceito fica para outra explicação).

Sintaxe - as estruturas frasais entre as línguas são diferentes. Não digo mais que isso. Não são mais fáceis, não são mais difíceis. São diferentes. No português, temos preposições, no japonês, posposições. Em português, a estrutura das frases é Sujeito, Verbo, Objeto, em japonês, Sujeito, Objeto, Verbo. Isso complica para quem fala uma língua diferente, mas não significa que seja mais complexo.

Estudos no campo da aquisição da linguagem mostram que as crianças aprendem estruturas básicas, desenvolvem e chegam à fluência em sua língua materna mais ou menos na mesma idade. E para TODAS as línguas. Não existe uma língua que as crianças nativas demorem mais a aprender do que outra. Isso mostra que não existem línguas mais complexas que outras... elas são apenas diferentes, com complexidades diferentes em pontos diversos.

A ideia de que o português é difícil é pura vaidade. É uma maneira de dizermos "somos inteligentes, falamos essa língua difícil". Esse discurso pode ser ouvido na França, sobre o francês, nos EUA sobre o inglês. É uma vaidade boba que temos.

Outro problema é que a escola ignora completamente a nossa língua real e quer nos empurrar goela abaixo uma língua ideal e irrealizável. Assim, as pessoas criam o mito de que "nem os brasileiros sabem falar a sua língua" (ideia completamente falaciosa e ignorante dos princípios linguísticos mais básicos), ou seja, "a língua é muito difícil". Nós sabemos falar muito bem a nossa língua. O problema é que a nossa língua não é aquela que a escola tenta nos impor. E esse fenômeno, diga-se de passagem, acontece em outros países também. O francês também acha que os próprios franceses não falam bem a própria língua. Isso não passa de um mito baseado na superioridade linguística de certas classes (tema esse que ficará para outro texto).

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Seis não é meu assunto. Meia dúzia, sim.

Ontem algumas colegas, abismadas com a inaceitável frase “eu não acredito que haja um deus”, vieram tentar me convencer com os mais variados argumentos de que estou errado. Tentavam até mesmo me intimidar com os perigos da pesada mão de Deus sobre os ingratos. Outra colega me disse que aceitava que dissessem “não tenho religião”, mas “não creio em Deus” era difícil. Outras tentaram provar que creio em Deus, pelo fato de usar a expressão “meu Deus”. Outra disse que eu deveria pedir perdão a Deus. Não preciso nem falar na incapacidade das pessoas de aceitar a diferença. Mas isso já está batido... quero abordar outra coisa.

Essas colegas começaram a me pressionar para mostrar quão errado estou. Eu falei “gente, não estou querendo falar de religião agora”. E eis a resposta que tive: “eu não falo de religião. Só falo de Deus”. Essa expressão não é nada original na verdade. Os evangélicos são ensinados a usá-la para rebater o “não se fala em religião”. E os desavisados engolem esse sapo. Para mim, essa frase é tão absurda quanto “eu não falo de mecânica, falo de motores dois tempos com cárter molhado, virabrequins e suspensões”.

A frase “não falo em religião, falo em Deus” vai além de uma manipulação barata que os incultos engolem. Não é somente uma frase comicamente absurda, tão engraçada quanto a da mecânica. É uma mostra clara da intolerância e da incapacidade de perceber até onde seu discurso expressa uma ideia e não um fato. Ora, para começo de história, não é preciso acreditar em um deus para se ter religião. Os taoístas, alguns budistas e algumas culturas animistas possuem todo um conjunto de crenças, mas não acreditam na divindade. Isso significa que falar em um deus ou em deuses inclui certas religiões (cristianismo, hinduísmo, islamismo) e exclui outras.

Além disso, cada religião teísta enxerga seu deus de uma maneira diferente. No islã, Deus é uno e não se aproxima dos homens. No cristianismo, ele é triuno e uma de suas pessoas veio viver entre os homens. No catolicismo, especificamente, Deus conta com a ajuda de diversos santos intercessores (o cristianismo tem uma [bela?] nuance de politeísmo). No hinduísmo, o politeísmo é declarado, assim, não há um deus totalitário. Assim sendo, quando uma pessoa fala de Deus ou dos deuses, podemos, pela maneira de falar, saber ou, pelo menos, deduzir qual a sua religião.

Então essa frase mostra a arrogância implícita do pensamento “se eu creio assim é porque é assim. Quem crê diferentemente de mim está errado”. Todo conhecimento que temos, sistema de crenças, sentimentos etc. são baseados no contato que temos com o mundo. Este contato não é direto, mas mediado por sentidos e interpretado por uma série complexa de operações cognitivas. É impossível ter certeza de que aquilo que eu vejo corresponde bem ou mal à verdade. Não dá pra dizer se alguém vê o azul de maneira tão correta quanto eu. Isso porque não há maneira correta de enxergar algo, mas sim, um ângulo que me propicia uma visão X e não Y daquela coisa.



Um cristão que tem certeza de que Cristo é o salvador não tem mais certeza do que a que um muçulmano tem de que Cristo é só um profeta. E como dizer quem está certo, se ambos têm a mesma certeza? Alguém vai me dizer “isso é uma questão de fé”, que é o coringa para resolver essa situação. É a opção para não pensar, pois esta frase anula qualquer possibilidade de reflexão e questionamento. Crer que Jesus é deus é tanto questão de fé quanto crer que ele é só um profeta. Voltamos à mesma: não há como saber quem tem a razão ou se, na verdade, existe alguma razão nisso.

Parafraseando o amigo escritor Félix Maranganha, o mundo não é por si lógico. A lógica é a maneira como os humanos organizam suas ideias. Assim sendo, impomos lógica ao mundo. Ou seja, a realidade não está no mundo, mas nas nossas mentes. O mundo não é nem deixa de ser como pensamos... o mundo apenas é... uns dizem que ele é azul, outros dizem que é preto, outros, que é rosa e tem alguns que acham que todos os outros são daltônicos. Quem está certo? Não sei. Precisamos mesmo que alguém esteja certo? “Eu acredito” e “eu não acredito” são frases que trazem por elas mesmas uma dúvida. Por que não parar de tentar achar desculpas para aquilo que não se sabe e, em vez disso, pronunciar um sonoro e libertador “eu não sei”?