sexta-feira, 16 de setembro de 2011

O espírito cristão

Eu não gostaria de ser entendido como um militante de alguma corrente de pensamento. Talvez isso seja inevitável. Não sei... eu não quero defender valores como absolutos. Apenas quero falar de questões na nossa sociedade que creio que causam visíveis males a quem vive nela. Não acredito que existam atitudes nem pensamentos moralmente falhos, a menos que esses prejudiquem as pessoas. Assim sendo, quero falar sobre conceitos que, creio eu, prejudicam as pessoas.

Eu poderia falar de pensamentos religiosos de várias partes do mundo, mencionar as religiões mais diversas... a simples escolha do cristianismo é pela razão mais óbvia: eu sou brasileiro, vivo em um meio cristão, fui cristão por 24 anos da minha vida e conheço bem a Bíblia. Conheço bem o comportamento dentro das igrejas sobretudo evangélicas, da qual fiz parte (fui presbiteriano). Sem mais explicações, vou direto ao ponto. Há vários conceitos fortes no nosso meio que têm causado problemas. Eis alguns:

Lutas antinaturais

“Então disse Jesus aos seus discípulos: Se alguém quiser vir após mim, renuncie-se a si mesmo, tome sobre si a sua cruz, e siga-me” Mateus 16:24

A primeira luta antinatural é a mais forte no cristianismo moderno: a castidade. Isso, para alguns, vai parecer um conceito ultrapassado, mas não é. Temos várias manifestações diferentes desse problema, sendo, aparentemente, todas elas danosas.

Antes de entrar nessa questão, é bom lembrar que o cristianismo vê, desde o Gênesis, o ser humano não como uma parte integrante da natureza, mas como um ser acima dela. “Façamos o homem à nossa imagem e conforme a nossa semelhança e domine sobre toda espécie vivente”. Gênesis 1.

Somos, segundo essa fé, semelhantes a Deus e donos (dominação e dono têm a mesma etimologia) da natureza. Somos os senhores sobre os animais. Não é preciso detalhar muito os resultados catastróficos desse tipo de pensamento: desflorestamento, caça desenfreada, competições esportivas baseada na dor dos animais (vaquejada, tourada, rodeio, caça esportiva etc), casacos feitos de pele retirada de maneira extremamente dolorosa etc. Religiões que vêem o homem como uma parte igual da natureza costumam incitar a uma vida em harmonia com a mesma.

Quando nos colocamos como “acima da natureza”, nos impomos também um dever moral: não seguir nossos instintos naturais, que são sujos, inferiores, “as obras da carne” (Gálatas 5), animalescos, que nos tiram da posição de senhores e nos devolvem à posição de igualdade. Devemos estar acima dos nossos instintos.

Assim, lutamos contra instintos sexuais, alimentares, linguísticos (que, segundo o Gerativismo, são também naturais) e tantos outros. Pessoas julgam outras por causa de bebida, palavras consideradas chulas ou até orientação sexual. Porque o homem é superior. Mais de 400 espécies de animais praticam o homossexualismo e isso é coisa de animal. Quando o ser humano pratica, é coisa suja, justamente porque somos mais que animais.

Não é preciso conhecer muito do mundo para saber que toda repressão leva a problemas. Sociedades sem muitos tabus sexuais não costumam ter a mesma proporção de estupros, pedofilia e tantos transtornos sexuais que a nossa. Toda repressão faz o instinto escapar por outro lugar. E não podemos arriscar... isso pode ser muito perigoso. O cristianismo prega a libertação de uma cadeia e aprisionamento em outra. Da cadeia do sexo irresponsável à cadeia da castidade. Da cadeia do alcoolismo à cadeia da abstinência (não estou dizendo que alguém que deixou o alcoolismo deve beber. Mas pessoas que não têm esse problema serem proibidas é absurdo).

E essas repressões afetam a toda a sociedade, inclusive quem não crê. Afeta a todos, pois estão mergulhados nessa cultura. Quantos ateus há que levam a vida sexual com culpa, dificuldade, porque foram educados a achar que é assim? Entendo que castidade ou abstinência alcoólica são escolhas pessoais. É problemático que alguém ache que suas conclusões servem para todos e sair pregando essa opção de vida como a única correta. Isso leva ao próximo ponto.

Pregação de valores absolutos

Certa vez, um amigo organizou um encontro para falar sobre o zen-budismo. Um amigo cristão falou que pediria a Deus para abrir os olhos dessas pessoas cegas e preencher aquelas vidas vazias. Não vou falar sobre a questão de salvação; vamos falar de assuntos palpáveis.

O cristão mediano tende a achar que alguém não pode ser feliz se não acreditar nas coisas que ele acredita. As pessoas, segundo o cristianismo proselitista, possuem um vazio em sua alma que deve ser preenchido por Jesus Cristo. Assim, ninguém pode ser feliz se não tiver chegado à mesma conclusão que levou à mesma fé que o cristão.

E a questão vai muito além da felicidade. Ela toca a moral. Assim, pessoas que não têm os mesmos valores não são somente infelizes, mas são pecadores não redimidos e pensam errado, por causa de sua suposta cegueira espiritual.

Hoje mesmo, vi um cristão – cujo mandamento principal é o amor – dizer que uma mulher que aborta é um monstro. Bem-vindos ao mundo moralista onde o sentimento do outro não vale mais do que lixo. Não estou dizendo que essa mulher que aborta está certa ou errada. Mas chamá-la de monstro sem ao menos conhecer sua história, é um bom exemplo de como não se ouve o “não julgueis” de Cristo.

Imagine uma mulher que foi estuprada, que cada vez que olha para sua barriga, chora lembrando que dará a luz o fruto da violência. Chora todos os dias por sentir seu corpo invadido e nojo por ser fecundada com a semente do homem que a invadiu e a desrespeitou como ninguém nesse mundo. Minha discussão aqui passa longe de “é certo ou não essa mulher abortar?”. Mas é de um moralismo de profunda insensibilidade olhar para o argueiro no olho dessa mulher e dizer “que monstro, abortou, matou um ser humano”. Tira a trave do teu olho!

Tudo é culpa e ameaças, como aqueles e-mails desaforados dizendo “Com Deus não se brinca” e mostrando gente que morreu por ter feito isso.

Julgamento exacerbado

“Não julgueis, para que não sejais julgados” Mateus 7.1. É, Jesus, seus seguidores não aprenderam muita coisa. Toda pessoa que age de acordo com crenças diferentes do cristianismo é pecadora e errada. Não importa o caminho que a pessoa traçou até chegar onde está. O moralismo ignora as necessidades humanas. O moralismo é insensível. Segundo o ele, o homem deve servir à moral e não a moral ao homem.

Uma pessoa, motivada por questões psicológicas profundas, necessidades básicas humanas é reduzida a uma simples pecadora. Imagino o caso de uma mulher que apanha do marido e deixa de comungar na igreja católica por ter cometido o pecado do divórcio. Outra, que passou a vida sendo ignorada pelo pai, e que sai com vários homens para sentir aquilo que mais lhe falta: o amor de um homem (não entremos na questão da eficacidade dessa opção. Atentemos apenas para a dor alheia). Essa mulher é solapada de sua posição de dor e autoestima baixa e levada à simples posição de pecadora. Nas palavras mais adequadas, puta.

Tudo gira em torno da culpa. Não crer é pecado. Sexo fora do casamento é pecado. Beber é pecado. Divórcio é pecado. Comer muito é pecado. Masturbação é pecado. Palavrão é pecado. Pecado, pecado, pecado! Respirar é pecado, se não for para a glória de Deus. E se um olho te faz pecar, arranca-o fora. Mateus 5.29. É a religião da mortificação do corpo em prol de uma suposta glorificação alma.

Ódio religioso

Este tópico será curto, pois não é preciso argumentar muito para mostrar que o cristianismo é disseminador de ódio religioso. Pastores evangélicos dizendo que a umbanda é coisa do demônio, cristãos (e não poucos) dizendo que ateus não têm bom caráter, e-mails em massa falando que o Islã está horrorizando o mundo. Saiu em um jornal dos EUA uma matéria falando sobre ateus perseguidos e até linchados em pequenas cidades do país, outros perseguidos no trabalho e até demitidos.

Sobre o Islã, é bom lembrar duas coisas: 1) o Islã convivia pacificamente na Europa, até que os católicos resolveram expulsá-los. Fizeram cruzadas em que matavam muçulmanos como quem mata baratas. Santa Inquisição, nem se fala. Depois de tudo isso, um muçulmano que não gosta de cristão é considerado mau? 2) o terrorismo causador de medo dos muçulmanos tem muito mais a ver com marketing do que com o Islã.

O cristão critica o jihad (guerra santa islâmica), mas não se dá conta do seu próprio jihad. Ele critica, persegue, censura, olha torto para pessoas que não creem e/ou não seguem o padrão de sua fé.

Eterno retorno ao sacerdote

Parafraseando Nietzsche, tudo gira em torno do poder do sacerdote. O cristão é sobrecarregado de culpas, dores, pecados, medos da condenação e está sob o poder do sacerdote. Nada melhor para dominar alguém do que dominar todos os seus prazeres e crenças sob a ameaça da condenação eterna.

O sacerdote é tão importante e tem um domínio tão forte, que se coloca entre o homem e sua divindade. O homem não é sequer capaz de confessar seus próprios pecados; deve passar pela mediação do sacerdote.

Justiça seja feita, os evangélicos não têm essa prática. Mas se engana quem acredita que o evangélico se vê em livre acesso ao seu deus, pelo fato de não precisar se confessar com o seu pastor. O pastor é o guia espiritual, que conduz seu rebanho no caminho bom (segundo ele) e que pune aqueles que transgridem a lei. Um pastor pode tomar medidas disciplinares, chegando até ao ponto de afastar uma pessoa da comunhão, momento máximo do culto evangélico, em que os fiéis se vêem na mais profunda conexão com a divindade. Se você pecar, até disso será privado.

O clericalismo não é uma maldição unicamente da Igreja Católica, apesar de ser filho de suas entranhas. O evangélico enxerga seu pastor como alguém mais próximo de sua divindade, que tem poder sobre decisões que deveriam ser totalmente individuais e subjetivas. O pastor, assim como o padre, é o representante de Deus na terra. O que Lutero falou sobre o direito do fiel à interpretação bíblica, esqueça tudo isso. A Bíblia já chega aos seus fiéis interpretada e qualquer discordância resulta em engano; qualquer engano resulta em pecado; qualquer pecado resulta em condenação eterna da alma. O clero já interpretou a Bíblia da “melhor maneira possível”. Já mastigou todo o seu conteúdo. O dever dos fiéis é engolir.

Me antecipando a certos comentários

“Você não deve generalizar”

É bom lembrar que é completamente impossível falar de um grupo sem generalizações. Quando se diz “Os alemães são brancos”, isso é uma generalização e não é mentira. Errado seria fazer uma “totalização”, dizendo “Todos os alemães são brancos”, pois há alemães negros e de outras etnias. Assim sendo, uma generalização não afirma “Todos são...” mas “Pessoas desse grupo, geralmente são...”. Sem as generalizações, não se pode falar de características de nenhum grupo. Há cristãos que não agem da maneira como falei.

“Este não é o verdadeiro cristianismo”

Não sei o que você entende por cristianismo, mas vamos lá: cristianismo é uma religião fundada pelos apóstolos (Pedro e Paulo, sobretudo), baseada no Velho Testamento e nos ensinos e morte de Jesus (e na crença de que ele é Deus e de que ressuscitou). Essa religião se desenvolveu até se tornar a religião oficial de Roma. Depois de alguns séculos, se tornou a Igreja Católica, que, depois de mais uns séculos, sofreu uma divisão chamada de Reforma Protestante. Há outros segmentos do cristianismo, mas esses são predominantes. Qualquer pessoa que se diga católica ou protestante ou simplesmente diga que crê na Bíblia, em Jesus Cristo e em um Deus triuno é cristã.

É muito fácil dizer que pessoas que agem mal não são cristãs. Assim, o cristão, mais uma vez, em seu sentimento profundo de superioridade, afirma que cristãos nunca têm mau caráter. Pergunto-me até quando os evangélicos vão se surpreender ao ver uma matéria “Fulano (evangélico) matou o pai”. Está na hora de parar de se surpreender. Pessoas de todos os segmentos matam! Inclusive cristãos!

Quando você se sentir tentado a dizer “violência não é coisa de cristão”, lembre-se da inquisição, autos-da-fé, cruzadas, salmos de guerra, linchamentos entre católicos e evangélicos (muito comuns no séc. XX e atuais em algumas cidades do interior), a briga entre a Irlanda do Norte e a Irlanda do Sul, o fato de a maioria dos presidiários no Brasil serem cristãos e não diga.

Para finalizar

Não creio que há crenças de todo ruins ou de todo boas. Mas falo do que me incomoda. Posso estar enganado, como qualquer pessoa pode. O problema do cristianismo de um modo geral é que ele não se permite engano. “Ou você crê como nós, ou está errado”. Eu não falo aqui para que cristãos deixem de ser cristãos. Quem se sente feliz assim, que o seja.

Eu me oponho, na verdade, à postura absolutizante e geradora de culpa do cristianismo. Não importam suas experiências de vida, seus sentimentos, o que mais importa para você: a regra é essa e é inflexível. Se você não a seguir, está errado e sujeito à condenação. Me oponho a essa manipulação de massas que se sentem oprimidas pela dor da culpa e se vêem dependentes dos seus guias espirituais. E me oponho, por fim, à pregação de abstinências, que deveriam ser escolhas pessoais, mas se tornam a única coisa certa a ser seguida, e cujo contrário é abominação a Deus e passível de condenação.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

E o aluno sempre tem a culpa

Este é um assunto que não costumo tratar aqui no meu blog. Porém hoje ouvi coisas a esse respeito que reacenderam minhas preocupações já antigas. Antes de tudo, para aqueles que não sabem, eu sou professor. E, nesse momento, não é a minha classe que vou defender; nem atacar. Apenas colocar no devido lugar.

Com teorias que refutaram o behaviorismo, a ideia de tábua rasa, de mentes vazias que deveriam ser preenchidas e do condicionamento através do comportamento, o aluno vem, há décadas, ganhando um papel mais ativo no processo de ensino-aprendizagem. O personagem central da educação deixou de ser o professor e passou a ser o aluno. Deixou-se de privilegiar o conteúdo e passou-se a privilegiar o processo. Assim, tentou-se garantir um espaço em que o aluno é dono de sua educação e não um objeto.

Entretanto, ainda hoje reina, nas mentes mais retrógradas, a ideia de que o professor sempre está correto. De que o aluno é sempre o culpado pelo fracasso escolar. Quem nunca ouviu o seguinte diálogo, depois que um filho tira nota baixa: “Mas mãe, todo mundo se deu mal nessa prova”. E a mãe responde “mas você não é todo mundo”?

Esta resposta da mãe revela duas problemáticas que eu considero graves:

1 – A mãe transmite ao filho uma arrogância que fere questões éticas muito mais importantes do que saber diferenciar um verbo intransitivo de um verbo transitivo direto. Como assim “você não é todo mundo”? Sinto quebrar as ilusões da arrogante mamãe que ensina seu filho a também ser arrogante, mas seu filho é sim parte do “todo mundo”. E ele quer ser todo mundo! Ele quer ser especial de certa forma, mas não especial a ponto de ter menos direitos ou mais deveres do que os outros. Isso não é educação. É opressão. Qual o problema em ver seu filho na média dos demais?

2 – Quando os pais pressionam seus filhos por uma nota baixa, sabendo que todos da turma se deram mal, eles automaticamente consideram que a culpa nunca é do professor. Sempre é do aluno. Este é um conceito que há décadas está ultrapassado, mas por décadas ainda apodrece na mente de alguns pais. O fracasso escolar não pode obrigatoriamente ser imposto ao aluno. Há diversos fatores que podem resultar no fracasso e apenas um deles é a falta de esforço do aprendiz. Se toda a turma se deu mal, é bom começar a se questionar se o professor está mesmo trabalhando de maneira adequada. O fracasso de toda uma turma é bem mais provável ser culpa do professor do que de todos os alunos.

E essas são questões para nós professores também atentarmos. Não somos os donos do saber. Não entramos em sala de aula para transmitir conhecimentos aos aprendizes. Entramos lá para estimular processos cognitivos que farão com o que o aluno, por suas próprias deduções, cheguem ao resultado. Somos apenas facilitadores, que, muitas vezes, em vez de facilitar, dificultamos tudo e tornamos a vida dos nossos alunos um inferno. Pais e professores, pensemos juntos nisso.