terça-feira, 25 de setembro de 2012

Sala de espera (o veredicto)

     
Angústia. A mãe entra com o filho. O pai prefere ficar do lado de fora. Quer ouvir o veredicto final de uma pessoa amada e não a palavra seca de um profissional. Será o veredicto a pena capital? A mãe acompanha seu filho, retraído, como que algemado, que, até pouco tempo atrás, prometia muitos anos e sucessos incontáveis pela frente. O pai fuma um cigarro, para não terminar de destruir as próprias unhas.

       Mãe e filho conversam sentados, esperando sua vez. Estão cheios de papéis, envelopes e laudos lidos repetidas vezes sem conseguir traduzir em português. Ela sorri para ele “põe nas mãos de Deus” enquanto, em pensamentos, fala “Deus, tão cedo? Deus, antes de mim?”. Uma mulher sai de uma sala, chama o nome do rapaz. Para os esperançosos, aquela voz soa suave, como a última dor que precede o alívio. Não é o que ouve a mãe. Ouve muito mais a voz de um meirinho que diz “todos de pé”, antes do pronunciamento do juiz: condeno o réu à morte.
 
       Entram na sala. Finalmente um profissional lerá os papeis. Um homem de autoridade. Ele abre todos os envelopes. Folhas e mais folhas de imagens que só podem ser vistas contra a luz. Ele coloca todas as catorze folhas de imagens sobre o negatoscópio, uma a uma. Faz valer a teoria da relatividade. Cerca de cinco minutos, que, para a mãe, parecem ser uma vida de torturas no inferno, criação de Deus para puni-la sabe-se lá por que crime. Senta-se à mesa, diante deles, e lê cada um dos três laudos do extenso e exaustivo processo. Fica calado.

       Do lado de fora, o pai acende outro cigarro. Seu rosto diz “não tenho nada que ver aqui”, enquanto a si mesmo grita “se, em vez dele, fosse eu, eu seria feliz”. Repete consigo “não vai dar nada... não vai dar nada”. Em um nível mais profundo da consciência, fala “não tente mentir para si mesmo”. Na menor expressão dessa voz profunda, acende mais um. O tremor violento das mãos dificulta mirar o fogo do isqueiro na ponta do cigarro.

     A mãe lembra dos tempos de infância do seu filho. Demorou a falar. Acho que vai crescer cheio de problemas de linguagem e de dicção. O pai pensa conectadamente “quem diria... virou poliglota logo quem eu achava que nem em português se daria bem”. Era extremo. Sempre foi. Se irritava fácil. Criança exagerada aquela, pensam os dois. Se não dessem bola pro que falava, fechava a cara e saía do recinto fora de si.  
 
       Extremo em tudo. Se brigava com os irmãos, sentia um ódio tão forte, que gastava toda a cota de uma vez só. Pouco tempo depois, os amava como se nada tivesse acontecido. Quando discorda de nós, discorda visceralmente, acredita no oposto total. Extremo em tudo, inclusive na sua repressão do choro. Igual a hoje. Não chora nada.

       O homem de autoridade diz: vai ser grande. A mãe tenta entender por quê. Lembra de tudo grande. O rapaz espera tudo grande. Vou pilotar Concordes, estudar na melhor instituição possível. Cada sentimento era grande. Esse meu filho ama grande, odeia grande, perdoa grande, guarda rancores grandes. Não me surpreende. Tudo é grande. Isso agora... não podia ter algo nele que não fosse extremo? Pelo menos isto agora?

       O homem diz: há chances. Mas logo isso... logo isso na vida dele não era grande. Chance. O pai pensa lá fora “que demora é essa? Assim vamos perder o almoço”. Tentava se convencer de que o maior problema deles agora era o almoço. “Prepare-se” é o que diz o homem de autoridade.

       Saem de lá com a mente flutuando nas nuvens do submundo. Um pensamento tão sombrio, que sequer eles mesmos podem identificar. A mãe e o pai se encontram na saída. Há silêncio entre eles. Mas ressoa milhares de vezes um eco demoníaco “Prepare-se! Prepare-se! Prepare-se!”. Que bom... não perdemos o horário do almoço. É lá que tudo se encontra. É lá que tudo se desencontra. O horário do almoço foi felicidade para pai e mãe ao longo da vida, vendo o filho contando suas vitórias. Nesse mesmo horário, se irritaram com os pensamentos absurdos, contrários à fé, aos bons costumes e à moral da família. Você almoça com alguém todos os dias e passa a saber mais do que gostaria.  
 
       É por isso que o pai insistiu a vida toda, todos almoçam ao mesmo tempo e na mesa. Sem TV, sem sofá. Na mesa. Quem não almoça junto não conversa. Não dialoga. Afinal, a TV faz isso pela gente. Família que não almoça junto é família desunida, um bando de estranhos dentro da mesma casa.  
 
Pai e mãe, aparência forte, nunca choraram na frente dos filhos. Sentam-se todos à mesa. E, como tem que ser em qualquer boa refeição em família, o pensamento sai, o escondido aparece. Não foi dita uma palavra até então. E, no silêncio da mãe, o pai escuta quase que telepaticamente: vai ser grande. E chora. Chora com amargura tal, que mais parece que o luto já começou. O choro do pai mais parece um vírus de contágio extremo, que atinge a todos os presentes. O filho diz “vai dar certo” e chora enclausurado.

       Não há luz no ambiente. Ninguém enxerga um gafanhoto pousado no próprio nariz. Com o sol forte do mês de janeiro, nada mais se vê do que névoa, trevas, como se todos já estivessem no hades, local do maior paradoxo: fogo e escuridão. E como fazem todo pai e mãe, há uma invasão de pensamentos “parece que foi ontem”.

       Que pensamento imoral é esse de ele dá e ele tira? Se uma criança não sabe o que é um chocolate, não chora por ele. Quem é esse que dá um chocolate a uma criança e depois tira? Que prazer mórbido se tem em deliciar-se das lágrimas da criança? E pai e mãe pensam coisas muito parecidas. Pois nós vemos entrar no mundo, mas não queremos estar presentes para ver sair. 

       Que espécie de mundo sombrio é esse em que tenho que assistir de perto minha maior vitória ser enterrada ao lado dos meus pais? O que é meu é dele! Mas minha casa, cheia de vida, quero deixar para ele, não um terreno cimentado. Não... nesses termos, a vida não existe. Posso continuar respirando, coração bombeando sangue, mas, desse jeito, não tenho mais vida.

       Pai e mãe se permitem o impensável. Questionamento imoral, infiel, desleal. Há de fato um Deus? Prove! Não parece! Quase imediatamente, auto-repreensão e pavor: quem sou eu para questionar? Eu tinha esse direito? Existe e tomara que não me castigue merecidamente ainda mais pelo meu desaforo. Deus é vingativo e zombeteiro. Com Deus não se brinca. Pedem perdão, assim como a vítima da tortura implora piedade ao chefe da máfia.

       Pai e mãe não trocam uma palavra. Mas ambos sabem o que o outro sente. As chances não são nulas. É, mas são pequenas! Só que não nulas! Filho, vai dar certo. Sim, eu sei. Não... ninguém sabe. Vai dar certo. Como? Que certeza é essa? Não! Ninguém sabe!!

       As chances são pequenas. Existem. Em algum lugar, existem. Sim, há chances. Não tem tratamento certeiro. Mas há chances. Respiram aliviados. Não dá pra chorar o tempo todo. Tem que haver um alívio. Ninguém suportaria a vida se não existisse alívio. Tem um alívio, uma esperancinha, uma chance. Só sentimos fome porque podemos solucioná-la. A angústia da fome não é páreo para a chance de comer. Há sempre uma chance. É nisso que se baseia a glória de Deus. Fazer sofrer para poder salvar e ganhar os créditos só pela parte boa. Perdão Senhor, quem somos nós?

       Recebem a ligação. Podem vir. Todos têm medo, confiança, pavor, alívio. Seu filho pode ficar bom. Obrigado doutor... salve-o. Vou tentar. Cirurgia sem dúvida? Sim... tá tudo espalhado. Pai e mãe, pensamentos em turbilhões. Mãe, quanta demora, cadê as notícias. Pai, entreguei um vivo, não quero receber um saco. Mãe, Deus põe as mãos. Pai, não pode... não pode... tem que dar, senão não quero mais nada. Pai e mãe, doutor?! Conseguimos! Agora é torcer pelo resto... nada é garantido, mas há uma chance. Preparem-se para tudo.

quarta-feira, 21 de março de 2012

A criminalização da ignorância

Que estamos em um mundo que reprime em vez de celebrar a diferença, disso não temos dúvida. O grande problema é que os novos defensores dos oprimidos se julgam os porta-vozes do “Viva a diferença”, mas não passam de mais uma corrente opressiva contra a diferença.

Em primeiro lugar, o discurso mais moderninho, na modinha e “descolado” é “somos todos iguais, por isso devemos respeitar a todos”. Discurso que suprime, oprime, reprime toda diferença e pensamento contrário à maré. Em primeiro lugar, não somos todos iguais. Temos, sim, igual valor. Mas não somos iguais! Ser igual não é o real motivo para respeitar alguém. O motivo de se respeitar alguém é pelo simples fato de ser alguém. Então, em vez desse discurso hipócrita de “somos todos iguais”, por que não sermos ainda mais nobres e falar “somos diferentes uns dos outros, mas devemos respeitar cada um na sua diferença”.

O grande problema está aí. Celebramos a igualdade no momento em que deveríamos celebrar a diferença. O discurso “somos todos iguais” gera mais intolerância do que se pode imaginar.

Neutralização da língua

A origem do politicamente correto se deu nos EUA, no século passado e tinha como objetivo neutralizar a língua com relação ao preconceito. Esse movimento chegou ao Brasil com a mesma ideia. Foi aí que foram substituídas palavras como “negro” por “afrodescendente”, “aleijado” por “portador de necessidades especiais”, “homossexualismo” por “homoafetividade” etc.

Qualquer linguista com um mínimo de conhecimento científico sabe que isso é não só arbitrário, como ineficiente. Acontece que a língua reflete os preconceitos da sociedade que a usa. Não é mudando palavrinhas que se muda o comportamento de um povo. É o mesmo que cortar as folhas de uma árvore para ver se ela morre.

A chave está em combater o preconceito! A língua acompanha. Porque das duas uma, ou as pessoas vão continuar usando o termo “negro” com sentido pejorativo, ou vão passar a usar o termo “afrodescendente” e atribuir sentido pejorativo à palavra.

Além do mais, controlar o uso que se faz da língua é uma medida ditatorial controladora de massas. Quanto mais parecido um povo é, mais fácil controlá-lo. Se você pega um conjunto de palavras que não devem ser usadas e impõe uma palavrinha para substituir todas as que foram banidas, você está buscando homonegeidade. Viva a diferença? Acho que não.

Não existem sinônimos perfeitos e é aberrante a tentativa de banir palavras em troca de uma, absurdamente considerada neutra. Absurdamente, digo, pois a palavra é de quem a usa. Ela nunca será neutra, pois o falante nunca será neutro. Cada palavra carrega um sentimento. Se você proíbe palavras, você proíbe sentimentos.

Coisas que não se pode dizer

Temos atualmente uma política do cerceamento da liberdade de expressão quando se considera que o que você diz fere a dignidade do outro. Se pararmos para pensar direitinho, o que hoje é considerado ferir a dignidade são palavras que a sociedade convencionou como tais. Você pode falar sobre o grupo x, pois está convencionado que não tem problema. Se você falar sobre o grupo y, você feriu a dignidade humana.

Acontece uma verdadeira perseguição àqueles que têm pensamentos considerados retrógrados, contra o atual senso comum da nossa sociedade. Essas pessoas não são instruídas sobre novos pontos de vista, são, isso sim, reprimidas, perseguidas, censuradas, caladas e, às vezes, encarceradas.
Viva a diferença? Acho veementemente que não.

Você feriu meus princípios. Você deve se calar

Eu ouvi direito? Infelizmente, sim. Exemplo disso? Pediram a proibição do comercial em que a Gisele Bündchen aparecia de lingerie. O argumento: fere a dignidade das mulheres. Vamos entender melhor: um grupo de pessoas acha que não há problema no comercial, outro grupo acha que há problemas. Como se resolve isso em uma democracia? DIÁLOGO! E obrigar o outro a se calar não é diálogo, não é democracia, chama-se censura ditatorial.

Com que direito, em uma democracia, quando alguém fere nossos princípios, obrigamos essa pessoa a se calar? Não sei, mas acontece e muito no Brasil. Em vez de sermos adultos, que discutem, discordam, exigem respeito através do argumento, usamos da censura e da truculência para, não simplesmente convencer o outro do seu ponto, mas para obrigá-lo a não falar algo que não queiramos. Tentamos arrancar o preconceito a fórceps. Agimos igual a crianças na escola que, ao ser zoadas pelos coleguinhas, chamam o irmão mais velho pra ir bater nos moleques.

“Ah, ele feriu meus princípios”. É direito seu se ofender, é direito seu questionar e dar uma resposta. Mas não é – ou não deveria ser – direito forçá-lo a calar-se. “Em uma democracia, as pessoas precisam aprender a suportar que os seus sentimentos sejam ultrajados” (Bertrand Russell, 1941).

Terrorismo contra o preconceituoso

Esse é um assunto que temos que analisar com bastante cautela. Em primeiro lugar, a primeira pergunta que temos que fazer é “de onde surge o preconceito?”. E a resposta é simples: da falta de conhecimento. Então a pergunta mais importante é: o lugar do preconceituoso é na cadeia ou em um local de instrução?

Vamos pensar concretamente. Uma pessoa é racista. Declaradamente acredita que pessoas de uma certa cor de pele são menos inteligentes. Ela fala isso em público e é presa. Agora eu pergunto: essa pessoa deixará de pensar que pessoas de uma determinada cor de pele são menos inteligentes porque foi presa? Não! Vai continuar pensando, não vai mais dizer em público, pois ficou com medo. Mas vai passar a mesma ideia para o seu filho, que vai passar pro filho e continuaremos a ter pessoas racistas no mundo.

Não se deve combater o preconceito proibindo as pessoas de dizer o que pensam! O terror à expressão de sentimentos considerados repulsivos não resolve o problema e causa novos. Não aprendemos nada com mais de 20 anos de AI-5? Combate-se o preconceito através do debate.

Então, uma pessoa que acha que pessoas de uma determinada etnia são menos inteligentes acha por ignorância. Por desconhecimento dos avanços científicos e dos conhecimentos que temos hoje. Essa pessoa tem que ser colocada em uma sala de aula, em um laboratório e em diversos lugares onde se mostre que todos os seres humanos têm a mesma estrutura cerebral, a mesma capacidade. Isso é provado cientificamente, não temos mais dúvidas disso. Dogmas são defendidos com repressão! Fatos são defendidos com argumentos e provas científicas! E isso nós temos de sobra.

E se a pessoa que foi instruída contra o preconceito não tiver se convencido e mantiver sua opinião? Paciência! Em uma democracia, ninguém tem que ser obrigado a mudar de ideia. O debate serve para tentar convencer, não obrigar.

Em resuno

Não se combate preconceito mudando palavras, banindo pessoas, proibindo de falar. Quando você faz isso, você também é intolerante e você não respeita a diferença de pensamentos. O que está sendo feito hoje no Brasil não é diferente do que tem sido feito por séculos.

O que os poderosos querem não é que as pessoas acreditem em X ou em Y. O que eles querem é que todos acreditem na mesma coisa, seja X, Y ou Z. Em uma sociedade homogênea, a facilidade de manipular as pessoas é maior. E todos estão sendo manipulados e nem sequer percebem. Acham que estão defendendo uma causa nobre. O preconceito não se combate com repressão, mas com diálogo e instrução. Mas, como sabemos, o terror serve mais a quem está no poder do que a instrução. E estamos adoecendo ainda mais o nosso país, enquanto os poderosos enriquecem vendendo placebo. Pense nisso.

Então, o que estamos vivendo no Brasil, através do politicamente correto, censura e criminalização do preconceito, passa muito longe de respeito à diferença e à dignidade humana. Estamos em um país que persegue e oprime, com o aval e a contribuição do Poder Público, quem fere os sentimentos da maioria. Viva a diferença? Estou bem convicto de que não.

Sou veementemente a favor do combate ao preconceito e do respeito à diferença. Acredito claramente que todas as etnias, religiões, pensamentos, culturas têm igual valor, apesar de diferentes. Devemos dizer não ao preconceito. Mas a maneira como ele tem sido combatido pelo Poder Público e pela sociedade como um todo não passa de uma forma modernizada (um upgrade) de intolerância. Intolerância e terror vestidos com roupinhas high-tech.


Em tempo, segue a cronologia da repressão e esforços das classes dominantes pela homogeneidade das massas, para facilitar o controle:

Antiguidade: execução de opositores ao governo ou à moral vigente
Idade Média e início da idade moderna: Inquisição
Idade Moderna: diminuiu bastante, mas o uso da religião ainda era forte com essa finalidade.
Idade contemporânea (século passado, no Brasil): ditadura e censura
Idade contemporânea (séc. XXI): politicamente correto e criminalização da ignorância

quarta-feira, 14 de março de 2012

Este aluno é mais inteligente?

- Fulano é muito estudioso. Só tira 10!
- Ele não é estudioso... é inteligente. Tira nota boa sem estudar.


Como alguns que leem meu blog sabem, há muito ele perdeu o interesse em ser sempre cômico. Eu falo sobre assuntos que me dizem algo e quando sinto que posso contribuir. Esta introdução é só para dizer que tenho me preocupado com uma questão referente à educação. A questão não é nova, mas recentemente venho refletindo a respeito. Muitos de nós já ouvimos o diálogo acima.

Não vou nem discutir como notas de escola não valem grande coisa e como o método de avaliação é ineficaz e injusto. Isso fica para outra discussão. Quero falar sobre esse conceito de aluno inteligente, que é prejudicial tanto para os ditos inteligentes, quanto para os excluídos dessa classificação.

O aluno que compra a ideia de que o inteligente é aquele que consegue boas notas sem estudar pode ser prejudicado, seja ele como for:

1.Aquele que não se encaixa nesse perfil acreditará que a inteligência é dada pelo destino, uns nascem com ela, outros terão que aceitar uma vida de esforços terríveis para conseguir algo. E, infelizmente, ele é um destes. Por um lado, pode ser bom, pois ele vai se esforçar mais e vai aprender mais. Por outro, isso é terrível para sua autoestima, o que gera sofrimento e pode até gerar dificuldades de aprendizagem.

2.Se o aluno se encaixa no perfil do dito inteligente, acreditará tanto em seu potencial, que não se esforçará. Deixará de se desenvolver plenamente e terá mais autoconfiança do que seria saudável. No futuro, se deparará com um mundo que ele não conhece: o mundo em que nada se conquista sem esforço.

Alguém poderia me dizer “pode ser duro, mas é a verdade, não devemos lutar contra a verdade”. Quem diz isso teria razão e me calaria já aqui, caso essa ideia de aluno inteligente fosse verdadeira. Porém, eu simplesmente acho que este conceito é mentiroso, injusto e ignorante. Seguem alguns pontos que sustentam a minha ideia.

Estilos de aprendizagem

Existem diversos estilos de aprendizagem (Gardner os separa em sete), e cada pessoa tem maior tendência para um diferente. Claro que todos temos um pouco de cada, mas sempre com maior ênfase para um ou dois deles. Aqui, vou me concentrar nos dois mais conhecidos tipos de alunos, por serem suficientes para explicar por que considero mentiroso o conceito de aluno inteligente do exemplo acima: aluno de aprendizagem visual e aluno de aprendizagem auditiva.

O aluno auditivo é aquele que aprende mais ouvindo do que lendo. Basicamente, ele não tem muita facilidade para aprender o conteúdo de uma matéria (e, consequentemente, de uma prova) através da leitura de um livro. Por outro lado, ele ouve tudo o que lhe é ensinado e tem uma grande capacidade de concentração quando recebe informações auditivas. Ou seja, esse tipo de aluno aprende o que lhe diz o professor e o que discute oralmente, não lê em casa e se dá bem nos exames. Este é o aluno dito inteligente, pois não estuda e aprende mesmo assim.

O aluno visual, diferentemente do auditivo, tem facilidade de captar bem o que lê e escreve. Não se concentra tão bem no que diz o professor, mas, ao ler o conteúdo em casa, aprende o que necessita e se dá bem na prova.

Cada um dos dois tem suas vantagens e desvantagens. A vantagem do auditivo é que ele não precisa* trabalhar mais em casa. O que o professor falou é suficiente para suas notas. Sua desvantagem é que a leitura, para ele, não é um ato tão natural e exige dele um esforço muito grande para manter a concentração. O aluno visual tem a desvantagem de precisar continuar seu trabalho em casa, porém a leitura é algo natural e ele pode ler livros com maior tranquilidade.

Analisando esses aspectos, passa a ser até estranho pensar que as pessoas consideram mais inteligente o primeiro tipo de aluno, não? Claro, tampouco o segundo tipo é o mais inteligente. Ambos têm formas distintas de aprendizagem, não podendo, de forma alguma, um ser considerado mais inteligente do que outro por isso.

* Não precisa para tirar notas boas. Mas notas boas não são suficientes para desenvolver o senso crítico de um indivíduo.

O que é inteligência?

Mesmo que considerássemos como inteligência a facilidade de aprendizagem, aqui mesmo já excluiríamos a ideia de que o aluno que tira boas notas sem ler em casa é o mais inteligente. Ele tem mais facilidade para aprender o que ouve e o outro tem mais facilidade para aprender o que lê. Ambos seriam considerados igualmente inteligentes.

Mas eu queria ir mais longe na ideia de inteligência. Não pretendo responder em definitivo o que é inteligência, mas dar uma noção mais importante do que aprender o que se ouve ou lê para a inteligência. Estamos acostumados a acreditar que a inteligência ou você nasce com ela, ou você é um azarado estúpido que vai ter que se contentar com abdicação, esforço ou trabalhos braçais. Trata-se de uma afirmação sobre a inteligência mentirosa e, até mesmo, levianamente utilizada por alguns.

Alunos que tiram boas notas na escola (e aí já entra uma parte da ineficiência da avaliação por testes com notas) não são necessariamente pessoas de senso crítico apurado. Quando você é um auditivo que ouve bem o que o professor disse ou um visual que entende tudo o que o livro da escola diz e escreve na prova o que o professor considera certo, não significa que você é uma pessoa crítica, consequentemente, inteligente (no conceito que estou tomando para inteligência). Chamá-lo de mais inteligente seria correto (e até óbvio) em uma linha de pensamento comportamentalista, de Skinner, em que o professor é um transmissor de conhecimentos. O aluno que entende o que o professor diz é inteligente, neste caso. Nesta visão, o professor é o retentor do conhecimento e ignora-se que o aluno tem um conhecimento prévio, pode obter conhecimentos posteriores e formar um pensamento ímpar. Mas a educação há muito tempo não é mais (ou não deveria ser) vista desta maneira. O professor, para exercer bem sua atividade, deve deixar de tentar fazer o que ele não pode (dar conhecimento) e se aperfeiçoar no que ele pode e deve fazer: ajudar o aluno a buscar conhecimento e, através desta prática, formular o seu próprio pensamento.

Digamos que um professor afirme que, na Segunda Guerra Mundial, a Alemanha cometeu o maior genocídio da história. O aluno que ouviu ou leu isso e respondeu à pergunta “Quando e onde ocorreu o maior genocídio da história?” com “Durante Segunda Guerra Mundial, na Alemanha”, é necessariamente um aluno inteligente? Certamente terá nota máxima nesta questão, mas ele buscou outras fontes ou confiou no primeiro que falou? Ele entendeu por que afirmam que este foi o maior genocídio da história? Ele buscou saber se houve maiores genocídios que esses? Um bom exemplo de genocídio foi o que sofreram os indígenas americanos, por parte dos Portugueses, Espanhois e Ingleses. Será que ele sabe disso? Se ele não souber deste ou de outro(s) genocídio(s), que ferramentas ele tem para poder dizer que o período do nazismo foi um dos maiores ou o maior? Simplesmente porque o professor disse? Não pretendo, de forma alguma, negar que o nefasto período nazista causou o maior (ou um dos maiores) genocídio(s) da história humana. Mas digo categoricamente que um aluno não deve aceitar isto como fato só porque seu professor disse ou porque leu no seu livro de história.

Assim, não podemos considerar que o papel da escola foi cumprido se o senso crítico do aluno não foi desenvolvido. Então, considero inteligente aquele que tem autonomia para, além de receber uma informação, questioná-la, buscar outras fontes e formar seu próprio pensamento.

Desenvolvendo a inteligência

Em suma, todos os tipos de alunos têm igual potencial. A diferença está no que eles fazem dele. Não se nasce com ou sem inteligência, assim como não se nasce musculoso. Quando alguém vê um juiz, que, como todos sabem, foi aprovado em um concurso difícil e derrubou milhares de candidatos, a tendência é dizer “esse aí é um crânio, muito inteligente”. Mas o que as pessoas ignoram, são as horas e horas de estudo diários que ele enfrentou, a renúncia aos lazeres e tantas coisas mais. Os amigos indo às festas e ele estudando oito horas por dia e/ou frequentando cursos preparatórios.

O nosso corpo não desperdiça energia naquilo que não lhe é útil. Temos um organismo inteligente. Assim, nosso organismo só gasta energia fazendo crescer os músculos, se levantarmos peso. O corpo vai interpretar que precisa se fortalecer para suportar aquela carga. Com o cérebro não é diferente. Seu senso crítico, capacidade de formular suas ideias só se desenvolverá se você trabalhá-lo. Se você não fizer atividades que exijam isso, seu cérebro vai considerar que isso é inútil, já que não faz parte da sua vida.

Assim, ninguém nasce burro ou inteligente. Nascemos com uma capacidade de desenvolver nossa mente. Uns a desenvolvem mais, outros menos. E não é ouvindo o que diz um professor e respondendo igual na prova que alguém poderá se considerar inteligente. O inteligente tem a capacidade de buscar conhecimento e gerar o seu próprio. Ele lê ou ouve algo e não aceita de primeira, pois sabe que há opiniões diversas. Busca mais e, ao final, não só faz um resumo do que leu ou ouviu, mas emite sua própria opinião a respeito.

Logicamente, não é preciso ser um leitor ou um acadêmico para ter senso crítico. Um aprendiz de pedreiro que vê seu professor fazer uma parede e é capaz de melhorar a técnica e erguer uma parede mais sólida também é um ser pensante, dotado de senso crítico, inteligente no que faz. O mais importante é entender que ninguém nasce com isso como um presente dos deuses, enquanto outros foram amaldiçoados com a estupidez: é preciso buscar isso e, aqueles que conseguem, foi por esforço e mérito próprio.

Então, os alunos que aprendem bem com o que dizem os professores, que se esforcem para buscar outras fontes, mesmo que isso exija esforço de leitura. Aqueles que aprendem bem o que leem, não se acomodem na leitura que o professor considera certa. Questione, busque outras ideias. E a todos eles, o maior conselho: não se contentem com apenas uma opinião a respeito de um assunto e, se conhecer várias opiniões (o que é um passo importante), não se limitem apenas a descrevê-las. Criem seu pensamento, deem a sua própria ideia. Essa sim, é uma pessoa crítica, autônoma, que resolve seus problemas e não é enganada facilmente. Apesar de eu ter muitas restrições a esse adjetivo, me atrevo a dizer que essa sim é uma pessoa inteligente.

Por fim, não é justo consigo mesmo olhar para o outro e dizer "que sorte a dele, é tão inteligente". Ele não tem nada a mais do que os outros. O caminho é o mesmo para todos: esforço.