terça-feira, 25 de setembro de 2012

Sala de espera (o veredicto)

     
Angústia. A mãe entra com o filho. O pai prefere ficar do lado de fora. Quer ouvir o veredicto final de uma pessoa amada e não a palavra seca de um profissional. Será o veredicto a pena capital? A mãe acompanha seu filho, retraído, como que algemado, que, até pouco tempo atrás, prometia muitos anos e sucessos incontáveis pela frente. O pai fuma um cigarro, para não terminar de destruir as próprias unhas.

       Mãe e filho conversam sentados, esperando sua vez. Estão cheios de papéis, envelopes e laudos lidos repetidas vezes sem conseguir traduzir em português. Ela sorri para ele “põe nas mãos de Deus” enquanto, em pensamentos, fala “Deus, tão cedo? Deus, antes de mim?”. Uma mulher sai de uma sala, chama o nome do rapaz. Para os esperançosos, aquela voz soa suave, como a última dor que precede o alívio. Não é o que ouve a mãe. Ouve muito mais a voz de um meirinho que diz “todos de pé”, antes do pronunciamento do juiz: condeno o réu à morte.
 
       Entram na sala. Finalmente um profissional lerá os papeis. Um homem de autoridade. Ele abre todos os envelopes. Folhas e mais folhas de imagens que só podem ser vistas contra a luz. Ele coloca todas as catorze folhas de imagens sobre o negatoscópio, uma a uma. Faz valer a teoria da relatividade. Cerca de cinco minutos, que, para a mãe, parecem ser uma vida de torturas no inferno, criação de Deus para puni-la sabe-se lá por que crime. Senta-se à mesa, diante deles, e lê cada um dos três laudos do extenso e exaustivo processo. Fica calado.

       Do lado de fora, o pai acende outro cigarro. Seu rosto diz “não tenho nada que ver aqui”, enquanto a si mesmo grita “se, em vez dele, fosse eu, eu seria feliz”. Repete consigo “não vai dar nada... não vai dar nada”. Em um nível mais profundo da consciência, fala “não tente mentir para si mesmo”. Na menor expressão dessa voz profunda, acende mais um. O tremor violento das mãos dificulta mirar o fogo do isqueiro na ponta do cigarro.

     A mãe lembra dos tempos de infância do seu filho. Demorou a falar. Acho que vai crescer cheio de problemas de linguagem e de dicção. O pai pensa conectadamente “quem diria... virou poliglota logo quem eu achava que nem em português se daria bem”. Era extremo. Sempre foi. Se irritava fácil. Criança exagerada aquela, pensam os dois. Se não dessem bola pro que falava, fechava a cara e saía do recinto fora de si.  
 
       Extremo em tudo. Se brigava com os irmãos, sentia um ódio tão forte, que gastava toda a cota de uma vez só. Pouco tempo depois, os amava como se nada tivesse acontecido. Quando discorda de nós, discorda visceralmente, acredita no oposto total. Extremo em tudo, inclusive na sua repressão do choro. Igual a hoje. Não chora nada.

       O homem de autoridade diz: vai ser grande. A mãe tenta entender por quê. Lembra de tudo grande. O rapaz espera tudo grande. Vou pilotar Concordes, estudar na melhor instituição possível. Cada sentimento era grande. Esse meu filho ama grande, odeia grande, perdoa grande, guarda rancores grandes. Não me surpreende. Tudo é grande. Isso agora... não podia ter algo nele que não fosse extremo? Pelo menos isto agora?

       O homem diz: há chances. Mas logo isso... logo isso na vida dele não era grande. Chance. O pai pensa lá fora “que demora é essa? Assim vamos perder o almoço”. Tentava se convencer de que o maior problema deles agora era o almoço. “Prepare-se” é o que diz o homem de autoridade.

       Saem de lá com a mente flutuando nas nuvens do submundo. Um pensamento tão sombrio, que sequer eles mesmos podem identificar. A mãe e o pai se encontram na saída. Há silêncio entre eles. Mas ressoa milhares de vezes um eco demoníaco “Prepare-se! Prepare-se! Prepare-se!”. Que bom... não perdemos o horário do almoço. É lá que tudo se encontra. É lá que tudo se desencontra. O horário do almoço foi felicidade para pai e mãe ao longo da vida, vendo o filho contando suas vitórias. Nesse mesmo horário, se irritaram com os pensamentos absurdos, contrários à fé, aos bons costumes e à moral da família. Você almoça com alguém todos os dias e passa a saber mais do que gostaria.  
 
       É por isso que o pai insistiu a vida toda, todos almoçam ao mesmo tempo e na mesa. Sem TV, sem sofá. Na mesa. Quem não almoça junto não conversa. Não dialoga. Afinal, a TV faz isso pela gente. Família que não almoça junto é família desunida, um bando de estranhos dentro da mesma casa.  
 
Pai e mãe, aparência forte, nunca choraram na frente dos filhos. Sentam-se todos à mesa. E, como tem que ser em qualquer boa refeição em família, o pensamento sai, o escondido aparece. Não foi dita uma palavra até então. E, no silêncio da mãe, o pai escuta quase que telepaticamente: vai ser grande. E chora. Chora com amargura tal, que mais parece que o luto já começou. O choro do pai mais parece um vírus de contágio extremo, que atinge a todos os presentes. O filho diz “vai dar certo” e chora enclausurado.

       Não há luz no ambiente. Ninguém enxerga um gafanhoto pousado no próprio nariz. Com o sol forte do mês de janeiro, nada mais se vê do que névoa, trevas, como se todos já estivessem no hades, local do maior paradoxo: fogo e escuridão. E como fazem todo pai e mãe, há uma invasão de pensamentos “parece que foi ontem”.

       Que pensamento imoral é esse de ele dá e ele tira? Se uma criança não sabe o que é um chocolate, não chora por ele. Quem é esse que dá um chocolate a uma criança e depois tira? Que prazer mórbido se tem em deliciar-se das lágrimas da criança? E pai e mãe pensam coisas muito parecidas. Pois nós vemos entrar no mundo, mas não queremos estar presentes para ver sair. 

       Que espécie de mundo sombrio é esse em que tenho que assistir de perto minha maior vitória ser enterrada ao lado dos meus pais? O que é meu é dele! Mas minha casa, cheia de vida, quero deixar para ele, não um terreno cimentado. Não... nesses termos, a vida não existe. Posso continuar respirando, coração bombeando sangue, mas, desse jeito, não tenho mais vida.

       Pai e mãe se permitem o impensável. Questionamento imoral, infiel, desleal. Há de fato um Deus? Prove! Não parece! Quase imediatamente, auto-repreensão e pavor: quem sou eu para questionar? Eu tinha esse direito? Existe e tomara que não me castigue merecidamente ainda mais pelo meu desaforo. Deus é vingativo e zombeteiro. Com Deus não se brinca. Pedem perdão, assim como a vítima da tortura implora piedade ao chefe da máfia.

       Pai e mãe não trocam uma palavra. Mas ambos sabem o que o outro sente. As chances não são nulas. É, mas são pequenas! Só que não nulas! Filho, vai dar certo. Sim, eu sei. Não... ninguém sabe. Vai dar certo. Como? Que certeza é essa? Não! Ninguém sabe!!

       As chances são pequenas. Existem. Em algum lugar, existem. Sim, há chances. Não tem tratamento certeiro. Mas há chances. Respiram aliviados. Não dá pra chorar o tempo todo. Tem que haver um alívio. Ninguém suportaria a vida se não existisse alívio. Tem um alívio, uma esperancinha, uma chance. Só sentimos fome porque podemos solucioná-la. A angústia da fome não é páreo para a chance de comer. Há sempre uma chance. É nisso que se baseia a glória de Deus. Fazer sofrer para poder salvar e ganhar os créditos só pela parte boa. Perdão Senhor, quem somos nós?

       Recebem a ligação. Podem vir. Todos têm medo, confiança, pavor, alívio. Seu filho pode ficar bom. Obrigado doutor... salve-o. Vou tentar. Cirurgia sem dúvida? Sim... tá tudo espalhado. Pai e mãe, pensamentos em turbilhões. Mãe, quanta demora, cadê as notícias. Pai, entreguei um vivo, não quero receber um saco. Mãe, Deus põe as mãos. Pai, não pode... não pode... tem que dar, senão não quero mais nada. Pai e mãe, doutor?! Conseguimos! Agora é torcer pelo resto... nada é garantido, mas há uma chance. Preparem-se para tudo.