segunda-feira, 11 de março de 2013

O pior momento da minha vida e o melhor de mim por mim mesmo


                1. O prenúncio

Há algum tempo venho sentindo vontade de compartilhar a experiência mais intensa e sofrida da minha vida. Foram momentos tristes, apavorantes, mas que mostram que sua luta só é perdida quando você se rende. Eu nunca fui muito do tipo de autoajuda... nem escrevo, nem leio... mas aparentemente, é o que de melhor posso fazer agora com a minha história. Sendo mais claro: sim, a intenção desse texto é dizer a quem está passando por um problema que não existe grau de dificuldade que torne um problema insuperável. É... segue uma autoajuda de quem nunca gostou de autoajuda... e acabou movido a escrever algo do tipo.

Pois bem. Tudo começou em 23 de dezembro de 2010. Estava angustiado. Um relacionamento, que um dia quase virou noivado, estava por um fio. Ela nem sequer morava no mesmo estado que eu. Marquei um voo. Provavelmente, seria o último encontro. O voo seria por volta das 23h. Passaria o natal lá. Acordei naquele dia com um pouco de cólica.

Eu tinha um programa de TV na época. Por volta das 8 horas da manhã, já estava no estúdio gravando. Senti cólica durante todo o programa. Achei que estivesse com indigestão. Passei o dia sentindo isso, tomando remédios para o problema que eu achava que tinha e nada se resolveu. À tarde, fui a um bar com meu amigo e colega de programa. Não aguentei de cólica e voltei para casa.

Por volta das 20 horas, minha mãe, que é enfermeira, me disse que eu deveria ir ao hospital, pois poderia ser apendicite. Fui. A médica me examinou e achou a mesma coisa, mas teria que fazer exames de imagem para se certificar. Me avisou de antemão: provavelmente você vai ter que adiar sua viagem. Com a possibilidade de apendicite, minha frustração foi enorme. Realmente, teria que cancelar meu voo.

Me encaminharam para a sala de ultrassom. Um alívio e um efeito rebote violento. Com o aparelhinho na minha barriga, o médico falou:

- Seu apêndice está bom. O problema é seu rim direito.

Eu, ingenuamente, perguntei:

- Estou com cálculo renal?
- Não dá pra ver... não descarto, mas não é o problema agora... aparentemente tem uma formação tumoral.
- Como é?
- Um tumor.

Eu tinha entendido que formação tumoral significava tumor. Só preferi achar que tinha entendido errado.

- É maligno doutor?
- Não é possível saber. Só em uma tomografia com contraste.
- Tenho alergia a iodo.
- Então não vai dar para saber. Depois você tem que marcar uma ressonância magnética com contraste.

Fiz a tomografia sem contraste. Meu rim direito tinha um tumor de 20cm. O médico manteve a afirmação de que não poderia me dizer se era maligno ou benigno. Voltei ao ambulatório. A médica me disse “Alyson, eu vou internar você”. Eu me recusei. Tinha uma viagem a fazer. A última. Meu irmão estava comigo. Ficou preocupado, ligou para minha mãe e pediu que ela me convencesse a ficar. Minha mãe me ligou calmamente, me disse que ficasse, que deixasse que os médicos cuidassem de mim. Senti saudade de ter apendicite.

A médica me olhou e disse. “Alyson... fique aqui... a escolha é sua, você pode ir... mas eu gostaria muito que você ficasse”. Houve uma pausa. “Alyson... pode ser câncer”. Fiquei em silêncio. Não dei uma palavra por sabe-se lá quanto tempo. E ela, tomando o silêncio como resposta, falou “Vou preparar a papelada para sua internação”. E me internei. Me deram algum remédio que aliviou minha dor.

Dormi. Não tive pesadelo, não tive insônia. Dormi profundamente. Acordei bem, mas ainda com um pouco de dor. Liguei para o meu urologista. Ele foi me ver e foi direto:

- Você vai precisar de uma cirurgia grande para remover esse tumor. Não sabemos se é benigno ou maligno, mas vamos remover seu rim.
- Não tem como salvar nenhuma parte do rim?
- Não. O tumor já tomou todo o rim e está maior do que ele. Quanto a isso, não se preocupe. Vive-se normalmente com um só rim. Vou lhe dar alta, pois seu caso requer muito estudo antes de lhe operar. Não vai ser agora.
- Então vou viajar.
- Sugiro que não. Você pode sentir dor e precisar de um hospital. Melhor estar perto de casa... melhor ficar.

Fiquei.

Acabo de descrever o que daria início à fase mais terrível da minha vida. Aos 27 anos, eu viveria o que eu achava que chegaria aos 80 sem conhecer.

2. O anúncio

Passei a festa de natal em família. Ao meu avô e à minha avó foi dito que eu tinha uma lesão renal provocada por um acidente de moto que havia sofrido em janeiro daquele mesmo ano. Que seria operado, retirado o rim e que tudo voltaria ao normal. Ainda sentia dor. No dia seguinte, a dor foi embora. E assim como nunca me incomodou antes, nunca voltaria e me incomodar depois.

Nesse período, começou a bateria de exames. Posso dizer que nunca havia sido tão examinado, enfiado em máquinas e furado nas veias como nesses dias que se seguiram. Raios-x do pulmão, ressonância do abdome e aparelho urinário, ecocardiograma transesofágico, exame de sangue, de urina, eletrocardiograma, exame de coagulação, etc. etc. etc.

Indo direto ao ponto. Fiz a ressonância. Lá encontraram um tumor de 20 centímetros no rim direito. Mas não foi só isso. Havia dois gânglios linfáticos comprometidos próximos à aorta abdominal, dois ou três nódulos no fígado. O tumor cresceu pelo rim, entrou na veia renal e subiu a veia cava (a mais importante do corpo, que sai do coração e vai até o abdome) e cresceu até o que aparentava ser a altura do fígado.

Fiz um ecocardiograma transesofágico para saber até onde estava crescendo esse tumor. Bastante incômodo. Meu corpo é extremamente resistente a sedativos e anestésicos. Tomei um sedativo que só fez efeito depois que o exame acabou. Esse procedimento nada mais é do que enfiar uma sonda na garganta para ver o coração mais de perto.

Conclusão: o tumor cresceu pela veia cava, subiu até a altura do átrio direito. Em outras palavras, ele entrava no coração.

Fomos ao médico para conversar. Minha mãe entrou comigo, meu pai ficou do lado de fora no aguardo. As palavras foram duras.

- Alyson, pela reação ao contraste, é quase certo de que é câncer e os nódulos no fígado são metástases. Você vai fazer uma cirurgia grande. Mas tem chance. 60 a 70% de chance. Câncer de rim não responde à quimioterapia. Os tratamentos para essa doença são quase inexistentes. Quase todo remédio passa sem efeito algum. A única conduta é a cirurgia.

Fomos para casa com uma trave enfiada nos olhos. Meu pai e minha mãe choraram muito na mesa durante o almoço. Eu fiquei quieto. Me tranquei no quarto e chorei. Uma das poucas vezes. Conto nos dedos de uma só mão as vezes que chorei.

3. Enganos e desenganos

Fomos aconselhados a ir a São Paulo. Lá haveria muito mais estrutura para cuidar do meu caso. Mas tentamos ficar por aqui, em João Pessoa ou Recife. Fomos a Recife ver quem, segundo informações colhidas, era um dos melhores cirurgiões hepáticos do país. O problema é que o tumor passava por trás do fígado. Precisaríamos de todo tipo de cirurgião, inclusive hepático. Mãe nenhuma está preparada para ouvir palavras tão desgraçadas quanto as desse médico (palavras essas que eu só soube por acidente e muito tempo depois).

- Dona Afra, não tenho coisas boas a dizer. Acontece que o tumor está em um nível da veia inoperável. Não podemos fazer mais nada pelo seu filho.

“Não podemos fazer mais nada pelo seu filho”. Duvido uma mãe ou pai que ouça isso, baixe a cabeça e diga “ok... que pena”. É onde eu digo: ninguém tem direito de dizer que sua luta acabou. Você é o dono da sua luta e você é quem tem que dizer onde ela começa e onde ela acaba.

- Doutor, e se fizermos quimioterapia?
- Infelizmente, não vai resolver nada.
- O que você quer doutor? Que eu diga ao meu filho que vamos esperar ele morrer? Nós vamos fazer alguma coisa por ele. Não vou cruzar os braços e esperar.
- Se a senhora quiser, posso conversar com colegas e pensar em tratá-lo com quimioterapia. Mas é placebo.

Minha mãe saiu. Disse que eu faria quimioterapia. Em seguida, o médico saiu e eu perguntei “doutor, vou fazer químio?”. Ele respondeu “vou conversar com colegas e direi uma resposta mais precisa depois”.

Nesse ínterim, os médicos de São Paulo ligaram dizendo que não sabiam se meu caso era operável, que não sabiam se tinha jeito, mas que iriam estudar mais e consultar colegas cirurgiões vasculares. Minha mãe entrou no inferno em vida. Não contou para o meu pai, pois achou que ele não tinha condições de receber a notícia. Contou para os meus irmãos e para meu tio, irmão dela. Era uma quinta-feira. Passaram-se quatro dias. Um fim de semana de merda para a minha mãe. Quem viu contou que ela chorava com uma amargura difícil de descrever. Se continha na minha frente.

Na segunda-feira, ela recebe a ligação mais feliz possível de São Paulo.

- Dona Afra, os cirurgiões vasculares entraram em contato e disseram que podem operar. Eles já fizeram cirurgia como essa antes e não foram duas ou três. Disseram que é perfeitamente factível.

4. Aproximação (breve comentário)

Meu avô (materno) nunca foi do tipo carinhoso, mas gostava da presença da gente. O amor dele por nós sempre foi claro, mas à maneira durona dele. Reclamão, seco, mas que adorava conversar. Nos últimos tempos, eu vinha sendo muito ausente na casa dele, apesar de ele morar no mesmo bairro. Ele reclamava minha presença.

Essa doença trouxe um lado bom: passei a ir lá com frequência. Ele disse “você andou ausente, mas agora está compensando tudo”. Tive uma convivência íntima com meu avô e minha avó nesse período de doença. Eles ficaram felizes e eu também.
  
5. Boas e más notícias

A trajetória até aí era de que uma notícia ruim atraía a outra e que nunca acabaríamos de nos decepcionar. Cada vez era algo pior. Foi aí que surgiram algumas notícias confortadoras. Mas esse conforto teve uma pausa. O relacionamento de que havia falado acabou. Não por culpa dela, não por minha culpa. Apenas não deu certo. A dor aumentou.

Estava tudo preparado para ir a São Paulo. Meu avô já vinha enfraquecendo pela idade avançada (86 anos) e pela desistência de viver. Mas, dessa vez, ele caiu de cama. Muito fraco, delirando, com alguns momentos de lucidez. Ele viveu 86 anos completamente lúcido. Mas, naquela semana, a coisa mudou. Na véspera de ir a São Paulo, fui lá vê-lo. Ele estava lúcido, mas fraco e falava com dificuldade, pausadamente. Esse foi o diálogo:

- Oi vovô.
- Oi Alyson. Você vai viajar já?
- Vou amanhã.
- Você vai a São Paulo, vai se operar e ficar bom. Vai voltar pra cá e continuar sendo esse mesmo rapaz feliz que sempre foi.
- É vovô. E quando eu voltar, você vai ter se recuperado também e a gente vai conversar muito. Tem uns casos do sertão que você ficou de me contar, lembre disso pra quando eu voltar.

Saí e chorei. Me perguntaram por que eu chorava. Eu respondi “essa é a última vez que eu vejo meu avô”. Tentaram me consolar dizendo que não, mas quem acreditou neles? Nem eles mesmos.

Eu estava em São Paulo. Comigo estavam meu pai, minha mãe e minha tia, cunhada da minha mãe. Eu queria que ela estivesse lá, pois quando me acidentei de moto, ela trouxe uma energia muito boa no hospital comigo. Tentei me internar em um hospital coberto pelo meu plano de saúde, que é nacional. Meu plano negou. Entramos na justiça. Liminar favorável a mim. Nesse tempo de brigas judiciais, meu avô foi internado em João Pessoa. Entrou na UTI. Minha mãe, que estava em São Paulo, mesmo relutante, voltou para João Pessoa. Se não fosse minha insistência, ela teria ficado comigo.

Meu avô morreu. Morreu sem saber que eu tinha câncer, esse é meu consolo até hoje. Meu irmão, minha irmã, meus primos, minha mãe, meu tio, todos choraram juntos e foram ao velório enquanto eu sofria à distância junto com meu pai e tia. A sensação de solidão era terrível. Meu pai, que não tem pai e mãe há muitos anos, sofreu como se tivesse perdido o pai pela segunda vez. Dizem que desgraça chama desgraça. Estava eu com uma doença grave, um noivado rompido e meu avô morto.

Minha solução? Rir. E meu riso traduzia e, ao mesmo tempo, servia de terapia a uma dor lancinante. Sou comediante stand up. Subia nos palcos em São Paulo, ria, fazia piada, saía com amigos. As pessoas me viam e diziam “não acredito que você está passando por tudo isso com tão boa energia”. Escolhi lutar. Escolhi ser feliz. Fui até assaltado nesse tempo. Dane-se, a vida segue.

Lembro de, ainda em João Pessoa, ter ido ao GAPC (Grupo de Apoio a Pessoas com Câncer). Eu ajudava financeiramente esse grupo, sem saber que tinha câncer. Depois, fui lá falar “agora sou público alvo de vocês”. A responsável pelo grupo me falou, no final da conversa: “achei que ia te ajudar e foi você quem me ajudou. Me deu uma lição de vida. Como você pode estar tão sereno em uma situação dessa? Minhas forças foram renovadas”.

Essa é a chave. Vivi um problema gigantesco, e nunca parei de sorrir.

6. Encarando o problema

Tive medo. Minha família sofreu como nunca. E esse medo deve ser vivido. Não devemos fugir dele. Um dia, quando não aguentava  mais, entrei numa luta moral comigo mesmo. Queria um consolo da minha mãe, mas tinha um pedido perturbador para qualquer mãe. Nenhuma mãe quer ouvir isso... mas eu não aguentei e falei.

- Mãe, me fala...
- O quê, meu filho?
- Me fala que eu não vou morrer.
- Meu filho, eu tenho muita fé de que você vai viver.

Estava internado, quando o oncologista falou.

- Alyson, você deve se preparar. Seu tipo de câncer é misterioso. Não tem cura. Se eu fosse você, me inscreveria em grupos de estudos, onde se fazem testes de novos tratamentos. O tumor será retirado, mas suas chances de viver normalmente não são grandes. Você vai, provavelmente, viver uma vida em hospital, indo e vindo. O tumor será retirado, mas dificilmente você ficará livre disso.

Os exames eram os piores possíveis. Câncer renal, que não tem tratamento, com metástases e invasões. Estava tão grande, que pressionava o pâncreas e o duodeno. Havia possibilidade de perder esses órgãos também. Se estivesse aderido à veia cava, perderia essa veia também. Fui operado. Todo o tumor foi retirado com êxito e não perdi o pâncreas, nem o duodeno, nem a veia cava.

A UTI é uma tristeza. Gente morre do seu lado, chega outro esperando morrer. Acordei entubado, pois não respirava sozinho. Um tubo que ia da boca até a traqueia, bloqueando minhas pregas vocais. Tinha uma sonda que entrava do nariz e ia até o estômago (sonda nasogástrica). Tinha uma sonda que ia da uretra até a bexiga (sonda vesical). Tinha uma agulha de soro numa veia do braço, um cateter na jugular, uma agulha dolorosa na artéria do punho, vários eletrodos no peito, um tensiômetro que verificava minha pressão de meia e meia hora automaticamente, um troço no dedo para medir o batimento cardíaco, uma bolsa de sangue na veia para transfusão e um cateter na coluna com morfina e outras drogas para eu não sentir a dor terrível da agressão da cirurgia, que abriu meu abdome de um lado ao outro. Um constante "pi... pi... pi...". Minhas mãos estavam amarradas à cama, para não correr o risco de eu acordar estressado e arrancar tudo. Tudo bem. Isso não teria acontecido, mas é bom prevenir.

Passei duas horas com o pulmão artificial depois que acordei da cirurgia, que durou oito horas. Aquilo me desesperava, pois eu queria beber água, estava muito desidratado, mas não podia. Pedi papel e caneta. Escrevi: quando vão tirar isso de mim? Responderam que só quando tivessem certeza de que eu estava respirando autonomamente.

Quando a fisioterapeuta falou “ok Alyson, vamos tirar esse tubo”, eu sorri. Ela falou “Que sorriso mais lindo”. Assim que ela tirou, eu disse “quero água”. Me deram só um pouco. Não importava quanta água eu bebesse, sempre tinha sede.

Os enfermeiros, fisioterapeutas e médicos que cuidavam de mim se abismavam com meu bom humor. Teve uma enfermeira que veio me dar banho e eu falei:

- Sou um rapaz direito... tá me vendo pelado, vai ter que casar.
- Eu já sou casada – falou rindo.
- E seu marido sabe que você tá me vendo pelado? Ele vai achar ruim.

                Não vou detalhar muito mais a experiência da UTI. Aconteceram muitas, muitas coisas desagradáveis. Mas vou passar direto.

                Quando eu já tinha tido alta, o oncologista me manda um e-mail. “Alyson, tenho ótimas notícias da sua biópsia, venha ao consultório que vamos conversar”. Lá, ele me falou que o tipo de câncer que eu tinha não era tão agressivo quanto ele achava e que eu tinha boas chances de viver uma vida normal.

                7. De quem é a luta?

                O fato é que eu sofri muito. Tive medo, tive tristeza, tive esperança e tive perda de esperança. Em alguns momentos, na dificuldade de achar o hospital em que ia ficar em São Paulo e no medo de o problema não se resolver, eu falei “já chega, desisto. Pai, mãe, decidam tudo por mim. Qual hospital, qual médico... vou ficar passivo a tudo”. Mas essa postura não durou nem mesmo um dia.

                De quem é a luta? A luta é minha. Note-se que eu recebi as piores notícias possíveis. Tudo foi piorando. Minha dor era excruciante. Era muita coisa. Um médico chegou a dizer que eu iria morrer. Estou, hoje, mais de dois anos depois, escrevendo esse testemunho.

                Recentemente, descobriram que eu tive uma recidiva (recaída da doença) no fígado e em três linfonodos. Estou em tratamento farmacológico. Cabe um adendo aqui. O Câncer renal tem tratamento há apenas seis anos. Na época que descobri, o remédio top era um. Hoje já existe outro mais moderno, que é o que estou tomando. Meu médico aqui me explicou que a doença não tem cura, mas tem controle. Você toma um remédio que, teoricamente, impede o crescimento dos tumores e previne o surgimento de novos. Ele me disse “a ciência tem feito progressos imensos nos últimos seis anos e, nesses dois últimos, ainda mais. Quem sabe, daqui a dois anos, eu tenha melhores notícias? Por enquanto, a ideia é que você tome remédio pelo resto da vida. Mas pode acontecer de criarem um definitivo, que você tome por um tempo e pare”.

                Esse remédio me traz muitos efeitos colaterais indesejáveis. Diarreia, enjoos, pressão alta, dores musculares, sensibilidade nas mucosas e na pele, fadiga, dor de cabeça, fraqueza, minha barba está branca e meu cabelo pode ficar também e muitas outras coisas. Mas não é o tempo todo, às vezes estou ótimo, às vezes ficou meio mal. E como estou com isso? Vivo e com os mesmos sonhos de antes.

                É essa a mensagem principal que eu tenho. Ninguém tem o direito de dizer quando você deve parar a sua luta. Alguém disse que eu iria morrer disso, antes mesmo de poder me operar. Ele estudou anos e anos para isso. Ele sabe mais do que eu. Ele é um grande conhecedor do corpo humano, coisa que eu não sou. Mas uma coisa eu sou que ele não é: o dono do corpo do qual ele falava. Por isso, eu sou o dono da situação.

                Eu nunca me entreguei. Nunca tive sequer depressão por causa desse problema. A luta é minha. Meus pais, meus médicos, meus irmãos, amigos, estão todos comigo para ajudar na luta, mas a luta é minha. E eu digo quando ela acaba e eu decidi que ainda não é o momento.

                Alguns dizem “meu médico me proibiu de comer tal e tal coisa”. Meu médico não me proíbe de nada. O corpo é meu. Tudo é minha decisão. Eu digo o que fazer e o que não fazer. Meu médico disse que álcool seria extremamente perigoso para mim, pois meu remédio sobrecarrega o fígado. Porém EU decidi levar em consideração o conselho dele e resolvi não beber. Eu não bebo porque escolhi. Eu tenho escolha, quem disse que não? Eu poderia dizer “não me importo... vou beber e viver a vida normal. Se der problema, eu já esperava”. Mas resolvi não escolher isso. Sigo os conselhos dos meus médicos. Mas a decisão é minha, eu sou ativo na situação inteira. Eles sugerem, eu decido.

                Alguns se surpreendem e me perguntam se eu já me desesperei. Nunca. Tive medo, angústia, tristeza, chorei... mas a esperança sempre esteve presente. Digo mais, o bom humor sempre esteve presente. Eu saía com os amigos... dei-lhes tanta liberdade, que eles faziam piada disso e eu ria.

                Quem me via num restaurante, num bar, jamais sonhava que eu estava com aquele problema. É saudável sentir angústia e chorar. Mas se entregar a isso não. Você é quem diz que caminho vai tomar diante da dor. Porque a dor é inevitável, mas se entregar a ela não. Tem coisas que eu não posso controlar. Se eu controlasse tudo, eu não teria câncer. Mas o importante é não perder o controle daquilo que está ao seu alcance. Como disse um grande amigo meu, Ricardo Nunes, “No que você puder agir, aja. Onde houver limitação, limite-se”.

                Há tantos problemas no mundo. Jamais me darei o direito de dizer “meu problema é maior do que o seu”. Cada um carrega sua dor. Alguns sofrem muito com um problema que outra pessoa encararia com serenidade. Por isso, o que escrevo aqui não é só para quem tem doenças graves, mas pode ser para alguém que está desesperado porque está no cheque especial. Todo mundo enfrenta problemas que parecem intransponíveis. A boa notícia é que eles não são.

                A cura está em cada um. Quem se entrega definha e morre. Se meu avô não tivesse perdido a vontade de viver, teria vivido mais. Estava bem idoso, mas ainda tinha um pouco de vida pela frente, se tivesse escolhido por ela. Sabe-se até por provas científicas que quem acredita na vida e na cura vive mais.

                Não passo horas da minha vida pensando como seria se eu não tivesse câncer. Não perco tempo pensando se vou morrer disso. O câncer não mata, ele PODE matar. Há uma longa distância entre essas duas coisas. Não acredita?

                Já ouviu falar de alguém que morreu porque se engasgou com um pedaço de carne? Comer mata? Não, apenas pode matar. Então, me dei conta de que passei minha vida toda correndo risco. Atravessar a rua, dirigir um carro, entrar em um avião, comer, beber água, tomar cerveja. Tudo pode matar. Mas até agora, não me matou. Mas já matou muitos.

                Significa que, agora, com o câncer, eu tenho apenas um risco a mais de morrer, entre os milhares que corro todos os dias. Aí alguém diz “sim, mas a porcentagem é maior”. É? Talvez, não sei. Confesso que não sei se 5% ou 95% das pessoas que têm a mesma doença que eu morrem. Nem quero saber. Pois eu não sou um número, uma porcentagem. Sou uma pessoa única, ninguém é igual a mim!

                Vou inventar uma porcentagem aqui e vamos pensar juntos. Digamos que 80% das pessoas que usam cinto de segurança sobrevivem a um acidente de carro e 20% morrem. Outra. Digamos que 80% dos que não usaram cinto morreram e apenas 20% sobreviveram. Agora, digamos que João estava de cinto, mas morreu no acidente. De que adiantou 80% sobreviverem para João? Carlos estava sem cinto e sobreviveu. De que adiantou saber que ele tinha 80% de chances de morrer? Carlos sobreviveu. Ele foi os 20%. Melhor ainda, ele foi Carlos.

                Assim, eu digo a mesma coisa. Não sei quais são as chances de eu morrer disso ou viver até a velhice e morrer pela idade. Não faz diferença. Ou eu vou morrer de câncer ou eu não vou morrer de câncer. E pronto. E, se há a possibilidade de eu morrer em função dessa doença, ao menos não terei vivido em função dela.

                8. Enfim...          

Não nomeei este tópico de conclusão, pois não está acabado. A luta continua. Não apenas minha luta, mas a de todos. A luta principal é continuar vivendo e lutando. Quem tem câncer não é sindicalizado, assim como quem atravessa ruas não é. Ambos podem viver ou morrer.

O sofrimento é inevitável, mas a maneira como vou encará-lo pode me salvar ou me condenar. Eu vivo feliz. Se às vezes eu tenho medo? Alguém tem dúvida disso? Tenho medo, mas tenho muito mais na vida do que medo.

Um dia, eu pensei “minha vida vai ser uma luta contra o câncer”. Automaticamente me corrigi, ao ver o absurdo do que eu falei. Minha vida vai CONTER uma luta contra o câncer e não ser. Eu sou muito mais do que isso. A vida tem muitos, muitos aspectos, muitos ângulos, muitos padrões de iluminação, de cenário e de maquiagem. O câncer, na minha vida, é um aspecto em um milhão.

Não importa o tamanho do seu problema e se alguém disse que não adiantava mais lutar. A luta é sua e você pode. E sua vida é muito mais do que apenas essa luta. Tem muito chão pela frente. Um dia, achei que morrer seria o melhor. Hoje, vejo que ainda tem muita coisa que quero realizar e estou satisfeito de ainda estar vivo. Namoro, tenho uma relação ótima, com alguém que amo, com quem quero me casar e que me dá forças todo dia para continuar minha luta, tenho minha família, meus amigos, trabalho e continuo querendo as mesmas coisas. Quem não tem câncer quer salário melhor, quer viver bem, quer amar, quer casar ou se separar, quer ter filho ou viver sozinho... quem tem câncer também. Eu mantenho os mesmos sonhos, aspirações, frustrações, alegrias e raivas de antes da doença.

Acredito no ditado querer é poder, mesmo não acreditando em querer é realizar. Se a gente quer algo, mas diz que nunca vai chegar lá, a gente não chega mesmo. Mas se a gente luta com todas as forças, há uma chance. Não significa que aquilo que você quer você VAI conseguir. Mas significa, pelo menos, que você tem uma chance. Às vezes a gente não consegue. Mas a gente só vai saber se tentar. Se não tentar, a resposta é não. Se tentar, a resposta é talvez. E isso é a vida... não existe um sim categórico. Tudo é um grande talvez. Exceto quando a gente desiste, que abre mão do talvez, da possibilidade do sim e abraça o não como se não houvesse outra opção.

Eu não escolhi ter câncer, mas escolhi o talvez. Vou continuar vivendo? Talvez. Vou correr atrás disso? Sim. Esse é o único sim que posso dar. Espero poder ter ajudado a que cada um que leia isso escolha o mesmo sim.



Tenho mais dois textos relacionados ao mesmo problema. O primeiro fala sobre brincar com o próprio problema e o segundo é um conto que escrevi baseado nessa história, do ponto de vista dos pais: