quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Sobre seres humanos, porcas e parafusos

Anda circulando pelas redes sociais a seguinte imagem.



Isso me trouxe um grande susto. Não estamos somente diante de uma oposição a um estilo de vida individual que cabe unicamente a quem o vive e a quem o compartilha. Estamos diante de uma incapacidade total de reflexão e de percepção do óbvio.

Porcas e parafusos foram criados com uma única finalidade: a parte roliça e espiral deste penetrar a parte aberta e espiral daquela. Se um parafuso se juntar a outro parafuso, não servirá de nada para montar um móvel ou qualquer estrutura. Se uma porca se juntar a outra porca, igualmente, não servirá de nada. Porcas e parafusos não têm sentimentos e não servem para nada a não ser um se juntar ao outro, sem nenhum desejo, sem nenhuma intenção, sem nenhum sentimento, para satisfazer única e exclusivamente as necessidades de um ser que não eles mesmos (o ser humano).

Isso se parece em alguma coisa com um relacionamento entre seres humanos? Já vejo muita diferença. Um relacionamento entre porcas e parafusos só serve para uma coisa: montar estruturas e satisfazer seres que não a própria porca e o próprio parafuso. É verdade, uma porca só casa com um parafuso e vice-versa. Essas duas ferramentas só servem para montar estruturas do jeito que outro ser, não eles, quer. Então, algo diferente disso, não casa. 

Mas seres humanos não são ferramentas para montar estruturas do jeito que outro ser humano quer. Relacionamentos não são reduzidos a uma estrutura roliça penetrando em um buraco. É tão óbvio, que me sinto frustrado de explicar a adultos o que deveria ser explicado a crianças de cinco anos: relacionamentos humanos têm muito mais do que o que a analogia das porcas e parafusos pretende. Assim, nem o termo casar tem o mesmo significado que teve quando o usei no final do parágrafo acima.

Alguém já ouviu falar numa porca que sentiu tesão quando o parafuso a penetrou? Alguém já ouviu falar em um parafuso que amou outros parafusos e, por isso, sofria preconceito dentro de sua caixa de ferramentas? Se sim, por favor, me conte. Deve ser um relato fascinante.

Relacionamentos humanos são compostos por amor, carinho, cumplicidade, compreensão, respeito, admiração e, claro, em muitos deles, sexo (é preciso dizer que porcas e parafusos não vivenciam isso?). Mas, diferentemente de ferramentas de carpinteiros, os seres humanos têm gostos, preferências, desejos. Não existe um ser externo que pega o homem, posiciona, levanta o seu pênis, coloca uma mulher em cima e martela até que toda a vagina seja penetrada. Homens e mulheres gostam de uma coisa e não gostam de outra e, assim, vão formando sua identidade sexual e escolhendo o que penetra o quê ou SE, por acaso, algo vai penetrar algo (existem seres humanos que gostam de sexo onde não existe qualquer penetração). 

Diferentemente de porcas e parafusos, um relacionamento interpessoal serve para algo além de uma coisa penetrar na outra e possui muito mais coisa envolvida do que uma coisa penetrando a outra. Diferentemente de porcas e parafusos, dois seres humanos não se juntam para satisfazer os desejos e necessidades de outros seres que não eles mesmos. Diferentemente de porcas e parafusos, um relacionamento não se torna inútil se uma coisa não penetrar na outra. Diferentemente de seres humanos, porcas e parafusos não criam falácias infantis para defender um ponto de vista.

E digo mais, se a questão crucial é que um objeto roliço penetre um buraco, é bom lembrar que cu também é buraco. 

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Obediência feminina

Quando alguém te pergunta "você acha que mulher boa é mulher obediente?", o que você responde? Creio que a maioria das pessoas responde que não. Creio inclusive que a maioria das pessoas machistas responde que não. Ser machista, creio eu, nada mais é do que achar que a mulher deve ser obediente. Aí você pode me perguntar "mas como ser  machista é achar que a mulher deve ser obediente, se você mesmo acaba de dizer que muitos machistas responderiam não a essa questão?"

É porque a maioria das pessoas exige a obediência feminina sem mesmo imaginar. Já vi pessoas machistas se declararem feministas por não saber nem o que é machismo, nem o que é feminismo. Pensam que machismo é achar que mulher tem que ficar na cozinha e feminismo é dizer que tarefa de casa deve ser dividida. Faz parte, mas não é só isso. Acontece que a obediência vai muito além de questões práticas cotidianas em que alguém diz "varra a casa" e a outra pessoa vai lá e varre.

A obediência se refere não só a ordens diretas, mas a diversos conceitos subjacentes. A obediência é a obrigação que um indivíduo tem de seguir uma ordem, um conceito, uma imposição de algo sobre sua vida. A pessoa que obedece abdica do seu direito de escolha pessoal.

Antes de tudo, uma analogia para ilustrar. Se eu estou na casa de João e ele me manda sair, isso não é obediência, pois ele está me dando uma ordem sobre algo que é de seu direito. Quando eu sair de sua casa, não estarei obedecendo, mas sim, respeitando seu espaço. Mas se João me disser como imposição "não use calça jeans" e eu parar de usar, isso será obediência. Ele está exigindo de mim algo que diz respeito exclusivamente a mim.

O machismo está muito acima de "mulher, traz meus sapatos", "mulher coloque a mesa" (apesar de que essas frases podem fazer parte). Uma pessoa que acredita que, num dia, a mulher deve servir o jantar e, no outro dia, o marido é quem deve servir, não é feminista só por causa disso. Em um lar feminista, as coisas funcionam assim, mas isso não é o bastante. É justo, mas não o bastante para se negar machista ou se afirmar feminista.

Existe uma infinidade de conceitos que precisam ser observados mais a fundo. Por exemplo, se você acha que mulher que se dá o respeito tem que ser sexualmente recatada, você exige obediência. Algo que não diz respeito a ninguém senão a ela mesma se torna alvo de julgamento de outros. Esse julgamento deve ser obedecido por ela, se ela quiser ser considerada mulher de valor.

Se alguém acha que tanto mulheres quanto homens não devem fazer sexo com desconhecidos, isso não é machismo. Isso é moralismo. Ou seja, é uma regra moral que deve ser seguida em detrimento do bem-estar humano. Você está dizendo que a moral está acima do homem. O que já é bastante problemático. Porém, como sabemos, isto não é o mais comum. Quando um homem faz sexo com mulheres desconhecidas, pouco ou nenhum julgamento se faz a respeito de seu valor como ser humano. Se uma mulher faz isso, é considerada sem valor, indigna, vadia, vagabunda, puta, mulher da vida e outros nomes que indicam como o amor ao próximo é a última das virtudes propagadas no mundo dito seguidor de Jesus. Por essas e outras que eu acho que a mensagem de amor de Jesus morreu junto com ele. Digressões à parte...

Assim, se uma mulher quer ser considerada de valor, ela deve obedecer a esses princípios sobre o uso do seu corpo, algo que só deveria dizer respeito a ela e a mais ninguém. Resumindo: a mulher deve ser obediente, o homem não precisa. Mulher desobediente é mulher sem valor. Alguns acham que isso é só uma crença recebida e perpetuada sem maiores problemas. Eu acho que é uma opressão covarde, perversa, injusta e sádica.

Além de proibir as pessoas de serem quem elas desejam ser, existe algo tão grave quanto isso: se você coloca um grupo de seres humanos acima de uma regra e outro grupo abaixo dessa regra, é lógico, evidente, que você sujeita este grupo àquele. É fácil inferir daí que o homem está acima da mulher. É fácil então inferir que a mulher deve ser submissa ao homem. Esse é o mecanismo básico de funcionamento do totalitarismo: os que estão no poder não são obrigados a seguir as mesmas regras que seguem os subjugados.

Isso é fato consolidado na relação entre homens e mulheres na nossa cultura. As regras ditadas costumam recair mais sobre elas. E não é só relativo ao sexo com desconhecidos, como no exemplo que dei acima. Podemos acrescentar uma longa lista que mostra que a maioria das pessoas (até algumas que juram não serem machistas) acha que a mulher deve ser obediente e o homem não. É mulher sem valor aquela que: usa roupa curta, fica embriagada, fala muito palavrão, faz sexo com muitas pessoas, passa a noite fora de casa, faz sexo extra-conjugal (sim, fica mais feio para a mulher do que para o homem), sai com prostitutos (isso para o homem é um pouco reprovável, mas mulher que faz isso é puro lixo), manda fotos íntimas para o namorado, fala o que pensa sem censura, toma iniciativa na paquera, arrota, peida na frente dos outros etc. Escolha uma dessas opções a seu gosto. Enfim, a maioria de nós acredita, mesmo que ache que não, que os homens estão acima de certos princípios, enquanto que a mulher deve ser submissa a esses mesmos princípios.

Em outras palavras: o papel da mulher é o de submissão, o do homem é o de dominância.

Então, quando alguém te perguntar "você acha que mulher boa é mulher obediente?", o que você responderá?