quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Sobre a tortura e a reabilitação de criminosos

Eu me envolvi recentemente em mais um debate a respeito do tratamento que recebem os presidiários no Brasil. Quem sempre me acompanha sabe e não ficará surpreso que eu diga que sou contra todo tipo de maus-tratos, torturas físicas ou psicológicas a quem quer que seja. Mesmo que seja bandido. No entanto, minha conclusão não se deu por algum achismo sem base alguma. Tenho minhas bases. Todas refutáveis, claro. O comportamento científico começa exatamente no refutável. Nada é assim e ponto final. Explicarei minhas bases, mas vou começar mencionando duas falácias que você sempre ouvirá se defender o ponto de vista que eu defendo.

FALÁCIA DO APELO À EMOÇÃO

“Você fala isso porque o bandido não fez nada com alguém da sua família”. Vejam bem, este argumento serve para defender ambos os lados. “Você defende a pena de morte porque seu filho nunca foi preso por assassinato”. Se um argumento pode facilmente ser adaptado e usado pelos dois lados, este argumento não tem validade alguma na discussão.

Além disso, minha ética é baseada em reflexões racionais. Meu estado emocional em relação a algo nada diz sobre a minha ética. Assim sendo, sou contra torturar um estuprador. Se ele, um dia, estuprar minha filha, talvez eu queira torturá-lo. Só que minhas emoções não ditam ética, mas sim, minhas reflexões. Se é errado torturar alguém, não passa a ser certo no momento em que estou emocionalmente envolvido e meus desejos dizem para fazê-lo. Da mesma forma que, se a pena de morte for correta, não passará a ser incorreta só porque o condenado é o meu filho.

Por fim, este argumento traz à tona uma segunda falácia. Não sei como a chamam os estudiosos da argumentação lógica. Vou chamá-la de falácia da alternativa binária.

FALÁCIA DA ALTERNATIVA BINÁRIA

Neste argumento, você reduz todos os milhares de possibilidades que o mundo oferece a apenas duas escolhas. Assim, ou você é a favor de maltratar bandido, ou é porque você nunca sofreu nas mãos de um. Já posso contestar isso facilmente, visto que eu e familiares meus já passamos por poucas e boas nas mãos de bandidos. Não vale a pena detalhar.

Outra falácia da alternativa binária é quando alguém diz que você, por pensar assim, defende bandido, está com pena. Você deve levá-lo para casa (reductio ad absurdum). Ou seja, só existem duas opções: ou você é a favor da tortura, ou você é um defensor de bandidos que deveria adotá-los e cuidar deles em sua casa. Este argumento é tão desonesto, que não preciso explicar muito. É notório que a própria pessoa que argumenta isso sabe que não existem apenas estas duas opções.
Vamos aos motivos por que eu acredito que um tratamento digno é o melhor para todos.

HISTÓRIA DA HUMANIDADE

Creio que, antes de fazer qualquer reflexão sobre temas sociais, é estritamente necessário que se pense no passado. Como sempre ouvimos dizer, é preciso entender o passado para saber o que fazer no presente.

Bom, não é mistério para ninguém que a tortura e as execuções cruéis nem sempre foram ilegais. Ao contrário, já fizeram parte das atribuições legais do Estado. Na Antiguidade, certas civilizações matavam adúlteros por apedrejamento (isso, infelizmente, ainda existe em alguns lugares). Na Inquisição, as torturas faziam parte do aparato do Estado. Mas, se esses métodos eram legais, por que deixaram de ser?

É preciso que compreendamos que a humanidade acumula conhecimento ao longo do tempo. Se ela muda seu comportamento, é porque percebeu que a maneira como estava agindo não estava funcionando e precisou se adaptar e buscar novas estratégias. Eu comparo isto à fala de um cientista. Quando um cientista de uma área afirma algo sobre seu domínio de estudos, não é sábio refutar sumariamente. Isto porque, se ele é cientista da área, ele tem alguma base. Por favor, não confundam isto com apelo à autoridade. É perfeitamente possível que você busque saber suas bases e conclua que são frágeis e não merecem credibilidade. Mas, para testá-las, é preciso, ao menos, que se fuja da refutação sumária. Não será sábio refutá-lo sem antes perguntar: baseado em que você diz isso?

Assim é com a nossa história. Se tivemos várias experiências no assunto e o Estado abandonou certas práticas (pelo menos no papel), cabe a nós perguntar: por que isso aconteceu? Durante o debate recente, ouvi o argumento: “ok, houve progressos... mas tornar ilegal a tortura foi um retrocesso”. Será?

FATOS

Em um mundo cheio de experiências num assunto, os achismos não nos cabem. É assim que se trabalha cientificamente. Levantamos hipóteses que precisam ser testadas. Eu tenho mestrado em linguística. Na minha dissertação, eu levantei três hipóteses. Após testá-las através de cuidadosa coleta de dados científicos, pude confirmar duas delas e fui obrigado a refutar uma. Ou seja, eu achava uma coisa e os meus dados, após pesquisa, me convenceram do contrário. Quando se tem dados, não adianta ficar dando voltas sem eles. Ou usamos os que temos, ou nos engajamos em uma pesquisa para completá-los.

A humanidade tem uma larga experiência em sociedades que torturam seus presos e sociedades que não os torturam. Se não existisse essa experiência, seria compreensível ficarmos no achismo, até que um estudo sério fosse realizado. Mas não é o caso. Temos dados e dados de sobra. E o que temos descoberto?

Descobrimos que as sociedades que menos praticam torturas a bandidos são também aquelas que vivem com baixa criminalidade e baixa reincidência no crime. Podemos citar a Suécia, Finlândia, Dinamarca, Noruega e Japão. Algumas delas, inclusive, aplicam penas menos severas que países como o Brasil (21 anos é a pena máxima, na Noruega). Para dar um exemplo, segundo matéria da Conjur, a Suécia reabilita 80% dos seus presos. Há, entre os estadunidenses, severas críticas à Noruega, afirmando que o país mantém "presídios de luxo", coisa que os EUA não fazem. Mas de nada vale todo esse falatório, quando a Noruega, empatada com o seu vizinho, reabilita 80% dos seus apenados, enquanto os EUA, apenas 40% (em suas prisões onde se constatam também tratamentos degradantes).

Do outro lado, fica claro que as sociedades que mais praticam tortura são também aquelas com maior taxa de criminalidade e maior taxa de retorno ao crime após a liberdade. Dentre elas, Brasil, Índia e vários países africanos. Enquanto, na Suécia, a taxa de reabilitação é de 80%, no Brasil, segundo a OMS, nossa taxa é de 72%. Mas não se animem! No nosso caso, essa taxa é de reincidência, não de reabilitação.

Retrocesso?

Se a sua prioridade for diminuir a taxa de criminalidade e de reincidência, para a construção de uma sociedade mais segura, não vejo outra opção senão a de concordar que o banimento total da tortura é progresso. Se a sua prioridade for a vingança e o sofrimento de quem causou problemas, mesmo que isto signifique uma sociedade mais criminosa e com menor índice de regeneração, então isto é retrocesso. Eu creio num Estado que tem a função de acabar com o crime e evitar que ele se repita e não de vingá-lo. Aí alguém pode dizer: “pena de morte é a saída. Um morto não pratica crimes”.

Aí está um outro problema. A pena de morte, além de, comprovadamente, não refrear a criminalidade e se configurar num tipo de tortura psicológica, tem graves efeitos colaterais na sociedade. Ao executar um prisioneiro, você deixa um filho órfão, uma mulher viúva, e faz uma mãe enterrar seu próprio filho. Você pune dezenas de pessoas pelo crime de uma. Claro que não queremos entregar um assassino de volta à sua família. O que desejo é pegar um assassino, transformá-lo num cidadão ético e honesto e devolver um bom pai, bom marido e bom filho à sua família.

“Ah, mas tem gente que não tem recuperação”. Mostre-me dados e bases sólidas para afirmar isso e eu vou ser obrigado a concordar com você. O fato é que as experiências em países que aplicam penas mais humanas mostram o contrário. Na Holanda e na Suécia, por exemplo, está havendo um fenômeno de fechamento de presídios, pois existem celas demais para presos de menos. Enquanto isso, no Brasil, faltam celas. Daqui a pouco, vamos ter que deixar condenados na rua porque não tem mais onde colocar.

O tratamento desumano a presos é a primeira reação que temos. Gostamos de ver sofrer quem faz sofrer. Instinto de vingança é natural e eu não me excluo disso. Quando fui assaltado, senti vontade de espancar os caras. Evoluímos para ver circunstâncias imediatas e tomar medidas imediatas. E assim, ter recompensa imediata. Assim era na selva e esta memória dos nossos ancestrais está forte no nosso cérebro. Mas também somos dotados de raciocínio lógico e temos como ir mais longe do que o imediato. Aprendemos que a recompensa imediata nem sempre é a melhor a longo prazo. Possuímos um raciocínio que nos permite ir além e nos aprofundar em questões que não estão óbvias diante dos nossos olhos. Cabe a nós usá-lo ou fazer prevalecer nossos instintos mais primitivos e emocionais.

CONCLUINDO

Assim sendo, sou contra todo tipo de tratamento desumano a presos. Não porque tenho peninha, não porque defendo bandido, não porque eu acho isso e pronto. Mas porque acredito que temos experiências no mundo o suficiente para dizer que a tortura já se mostrou ineficiente, já se mostrou, inclusive, grande estimuladora da reincidência criminal, enquanto que o tratamento humano e digno já se mostrou propiciador de uma sociedade mais saudável não só para os condenados, mas para aqueles que estarão esperando por eles do lado de fora.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015


"Mas Jesus foi para o Monte das Oliveiras. Pela manhã cedo voltou ao templo, e todo o povo vinha ter com ele; e Jesus, sentando-se os ensinava. Então os escribas e fariseus trouxeram-lhe uma mulher apanhada em adultério; e pondo-a no meio, disseram-lhe: Mestre, esta mulher foi apanhada em flagrante adultério. Ora, Moisés nos ordena na lei que as tais sejam apedrejadas. Tu, pois, que dizes? Isto diziam eles, tentando-o, para terem de que o acusar. Jesus, porém, inclinando-se, começou a escrever no chão com o dedo. Mas, como insistissem em perguntar-lhe, ergueu-se e disse-lhes: Aquele dentre vós que está sem pecado seja o primeiro que lhe atire uma pedra. E, tornando a inclinar-se, escrevia na terra. Quando ouviram isto foram saindo um a um, a começar pelos mais velhos, até os últimos; ficou só Jesus, e a mulher ali em pé."
João 8.1 – 9
 
Não sou cristão. Cito esta passagem por dois motivos: 1 – admiro muito a figura de Jesus, como exemplo de compaixão e perdão; 2 – a maioria das pessoas que conheço são cristãs. Este último ponto é óbvio, afinal, estamos no Brasil, o maior país católico do mundo. A maioria das pessoas que vejo adotar a postura citada acima são cristãs. Não porque cristãos sejam assim. Compaixão ou hipocrisia são características de cristãos, muçulmanos, budistas, ateus etc. Enfim, compaixão ou hipocrisia são comportamentos de seres humanos, independentemente do credo ou da falta dele. Digo que vejo comportamentos assim, na maioria, em cristãos, somente porque a maioria das pessoas que conheço são cristãs. É apenas uma questão de contingência e nada mais.
 
As mulheres surpreendidas em “pecado” agora são mais acessíveis. Você vê vídeos compartilhados no Whatsapp de um casal fazendo sexo uma vez por semana, no mínimo. A reação das pessoas é uníssona: isso é uma puta, uma vagabunda.
 
Creio que Jesus, em sua fala, pensou em várias coisas além da hipocrisia em si. Em primeiro lugar, se a mulher adulterou, devia ter outra pessoa com ela. Provavelmente, um homem. Onde estava ele na hora da acusação? Não importa... homem pode.
 
A primeira reação é esta: esta mulher é uma puta. E o homem? Não temos opinião formada sobre ele. No máximo, ele é apenas um macho exercendo sua função de macho: comer mulher. E a mulher que ele come é sempre uma puta. Ou seja, se uma mulher faz sexo com um homem (resguardadas as casadas), é uma puta. Interessante isso, porque a maioria das mulheres que eu conheço, seguindo essa regra, são putas. Inclusive as mulheres que acusam a pessoa do vídeo de ser puta ou as namoradas dos homens que acusam a pessoa do vídeo de ser puta.
 
Depois disso, segue o linchamento moral. A pessoa é perseguida, hostilizada, zoada nas redes sociais, alguns vão até a casa da mulher e picham o muro de “Vagabunda”. Ela só não é apedrejada (cuidado, porque isso ainda vai acontecer) porque a nossa lei não permite. Jesus olharia para isso e diria “quem são esses malucos?”. Ele, certamente, não achou correta a atitude da mulher (não vou discutir essa questão. Os princípios morais dele não estão em total uníssono com os meus). Mas o que ele demonstrou para com ela foi amor, em detrimento do ódio que os outros demonstraram. Pergunte a algum dos acusadores contemporâneos das pobres vítimas do Whatsapp o que é o amor e a compaixão, e você terá uma resposta meramente ilustrativa. Deveria vir com um aviso: as imagens aqui apresentadas não correspondem ao produto real. Nossas pedras são afiadas e é bastante incômodo se abaixar, pegar uma pedra e desperdiçar este esforço largando-a de volta no chão, sem abrir, pelo menos uma, ferida sangrenta na cabeça do nosso objeto de ódio.
 
Imaginem que filmar um ato sexual pode ser uma tara de um casal. Eles têm prazer nisso e isso melhora a sua vida sexual. Se opor a usar estratégias que aumentem o prazer sexual é como se opor a melhorar o tempero de uma comida. O prazer sexual na vida de um casal é essencial e devemos buscar as ferramentas que nos agradem para atingi-lo ao máximo. Aí eu vejo uma ameaça terrível. Para uma boa parte das pessoas, filmar é coisa de puta. “Só a minha forma de ter prazer é a certa”, pensam eles do seu profundo sentimento ególatra de que são o centro do universo. A mulher que se deixa filmar é puta. E o homem que filma.... não temos opinião formada sobre ele.
 
O que vem a seguir é a parte mais perniciosa. O homem, ofendido por um fim de namoro (ou seja lá por que razão), divulga o vídeo. Todos vêem a enorme indignidade do homem que expôs a vida íntima de alguém sem expressa autorização. Alguns dizem que ela deu brecha. Ora, existe um contrato claro: “este vídeo eu fiz para você e mais ninguém. Quero que você o veja, mas não quero que outras pessoas vejam”. É difícil entender isso? É difícil entender que uma mulher que expõe sua nudez a um homem não necessariamente quer expô-la a um outro homem? Aí o homem divulga, cometendo crime, ferindo a dignidade de uma pessoa e expondo-a ao apedrejamento. Qual a reação? Isso é uma puta. E o homem? Não temos opinião formada sobre ele.
 
O homem, em nenhum momento deste processo, aparece nas acusações. Nem mesmo quando se constata que cometeu grave delito, quando se vê que a ofensa, na verdade, foi dele. Agimos de igual modo a tribunais de alguns países em que a mulher estuprada é morta por adultério e o estuprador sai ileso. Não somos melhores do que os tribunais desses países. Esta é uma característica forte de um regime totalitário: os superiores não são obrigados a seguir as mesmas regras que os seus subalternos. Assim, a mulher é limitada por regras morais às quais os homens não são. Logo, o homem é o superior da mulher neste regime totalitário.
 
O mais triste de ver é que, não só homens, mas mulheres exercem esta opressão também. Elas mesmas julgam as outras, não imaginando que elas, em algum momento, podem ser as próximas a virar alvo das pedradas. E os homens exercem esta opressão, não sabendo eles que uma pessoa amada deles também pode virar o próximo alvo das pedradas.
 
Aí eu penso em Jesus. Leio o texto de João 1 e me pergunto o que ele faria se ele visse um compartilhamento de imagens no Whatsapp nos dias de hoje. E se ele visse essas pessoas cheias de ódio, sangue nos olhos e faca nos dentes replicando as imagens e gritando em coro ritmado “PU-TA, PU-TA, PU-TA”!? Você acha que ele se uniria ao coro com gritos de “PU-TA, PU-TA, PU-TA”?
 
Então, adaptando, a este contexto, e colocando um pouco de ênfase em uma citação do comediante estadunidense Bill Maher: se você tem qualquer uma dessas atitudes citadas acima, desculpe te dar a má notícia, mas você não é um seguidor de Jesus Cristo. Você é, no máximo, um fãzinho histérico.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Sobre seres humanos, porcas e parafusos

Anda circulando pelas redes sociais a seguinte imagem.



Isso me trouxe um grande susto. Não estamos somente diante de uma oposição a um estilo de vida individual que cabe unicamente a quem o vive e a quem o compartilha. Estamos diante de uma incapacidade total de reflexão e de percepção do óbvio.

Porcas e parafusos foram criados com uma única finalidade: a parte roliça e espiral deste penetrar a parte aberta e espiral daquela. Se um parafuso se juntar a outro parafuso, não servirá de nada para montar um móvel ou qualquer estrutura. Se uma porca se juntar a outra porca, igualmente, não servirá de nada. Porcas e parafusos não têm sentimentos e não servem para nada a não ser um se juntar ao outro, sem nenhum desejo, sem nenhuma intenção, sem nenhum sentimento, para satisfazer única e exclusivamente as necessidades de um ser que não eles mesmos (o ser humano).

Isso se parece em alguma coisa com um relacionamento entre seres humanos? Já vejo muita diferença. Um relacionamento entre porcas e parafusos só serve para uma coisa: montar estruturas e satisfazer seres que não a própria porca e o próprio parafuso. É verdade, uma porca só casa com um parafuso e vice-versa. Essas duas ferramentas só servem para montar estruturas do jeito que outro ser, não eles, quer. Então, algo diferente disso, não casa. 

Mas seres humanos não são ferramentas para montar estruturas do jeito que outro ser humano quer. Relacionamentos não são reduzidos a uma estrutura roliça penetrando em um buraco. É tão óbvio, que me sinto frustrado de explicar a adultos o que deveria ser explicado a crianças de cinco anos: relacionamentos humanos têm muito mais do que o que a analogia das porcas e parafusos pretende. Assim, nem o termo casar tem o mesmo significado que teve quando o usei no final do parágrafo acima.

Alguém já ouviu falar numa porca que sentiu tesão quando o parafuso a penetrou? Alguém já ouviu falar em um parafuso que amou outros parafusos e, por isso, sofria preconceito dentro de sua caixa de ferramentas? Se sim, por favor, me conte. Deve ser um relato fascinante.

Relacionamentos humanos são compostos por amor, carinho, cumplicidade, compreensão, respeito, admiração e, claro, em muitos deles, sexo (é preciso dizer que porcas e parafusos não vivenciam isso?). Mas, diferentemente de ferramentas de carpinteiros, os seres humanos têm gostos, preferências, desejos. Não existe um ser externo que pega o homem, posiciona, levanta o seu pênis, coloca uma mulher em cima e martela até que toda a vagina seja penetrada. Homens e mulheres gostam de uma coisa e não gostam de outra e, assim, vão formando sua identidade sexual e escolhendo o que penetra o quê ou SE, por acaso, algo vai penetrar algo (existem seres humanos que gostam de sexo onde não existe qualquer penetração). 

Diferentemente de porcas e parafusos, um relacionamento interpessoal serve para algo além de uma coisa penetrar na outra e possui muito mais coisa envolvida do que uma coisa penetrando a outra. Diferentemente de porcas e parafusos, dois seres humanos não se juntam para satisfazer os desejos e necessidades de outros seres que não eles mesmos. Diferentemente de porcas e parafusos, um relacionamento não se torna inútil se uma coisa não penetrar na outra. Diferentemente de seres humanos, porcas e parafusos não criam falácias infantis para defender um ponto de vista.

E digo mais, se a questão crucial é que um objeto roliço penetre um buraco, é bom lembrar que cu também é buraco. 

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Obediência feminina

Quando alguém te pergunta "você acha que mulher boa é mulher obediente?", o que você responde? Creio que a maioria das pessoas responde que não. Creio inclusive que a maioria das pessoas machistas responde que não. Ser machista, creio eu, nada mais é do que achar que a mulher deve ser obediente. Aí você pode me perguntar "mas como ser  machista é achar que a mulher deve ser obediente, se você mesmo acaba de dizer que muitos machistas responderiam não a essa questão?"

É porque a maioria das pessoas exige a obediência feminina sem mesmo imaginar. Já vi pessoas machistas se declararem feministas por não saber nem o que é machismo, nem o que é feminismo. Pensam que machismo é achar que mulher tem que ficar na cozinha e feminismo é dizer que tarefa de casa deve ser dividida. Faz parte, mas não é só isso. Acontece que a obediência vai muito além de questões práticas cotidianas em que alguém diz "varra a casa" e a outra pessoa vai lá e varre.

A obediência se refere não só a ordens diretas, mas a diversos conceitos subjacentes. A obediência é a obrigação que um indivíduo tem de seguir uma ordem, um conceito, uma imposição de algo sobre sua vida. A pessoa que obedece abdica do seu direito de escolha pessoal.

Antes de tudo, uma analogia para ilustrar. Se eu estou na casa de João e ele me manda sair, isso não é obediência, pois ele está me dando uma ordem sobre algo que é de seu direito. Quando eu sair de sua casa, não estarei obedecendo, mas sim, respeitando seu espaço. Mas se João me disser como imposição "não use calça jeans" e eu parar de usar, isso será obediência. Ele está exigindo de mim algo que diz respeito exclusivamente a mim.

O machismo está muito acima de "mulher, traz meus sapatos", "mulher coloque a mesa" (apesar de que essas frases podem fazer parte). Uma pessoa que acredita que, num dia, a mulher deve servir o jantar e, no outro dia, o marido é quem deve servir, não é feminista só por causa disso. Em um lar feminista, as coisas funcionam assim, mas isso não é o bastante. É justo, mas não o bastante para se negar machista ou se afirmar feminista.

Existe uma infinidade de conceitos que precisam ser observados mais a fundo. Por exemplo, se você acha que mulher que se dá o respeito tem que ser sexualmente recatada, você exige obediência. Algo que não diz respeito a ninguém senão a ela mesma se torna alvo de julgamento de outros. Esse julgamento deve ser obedecido por ela, se ela quiser ser considerada mulher de valor.

Se alguém acha que tanto mulheres quanto homens não devem fazer sexo com desconhecidos, isso não é machismo. Isso é moralismo. Ou seja, é uma regra moral que deve ser seguida em detrimento do bem-estar humano. Você está dizendo que a moral está acima do homem. O que já é bastante problemático. Porém, como sabemos, isto não é o mais comum. Quando um homem faz sexo com mulheres desconhecidas, pouco ou nenhum julgamento se faz a respeito de seu valor como ser humano. Se uma mulher faz isso, é considerada sem valor, indigna, vadia, vagabunda, puta, mulher da vida e outros nomes que indicam como o amor ao próximo é a última das virtudes propagadas no mundo dito seguidor de Jesus. Por essas e outras que eu acho que a mensagem de amor de Jesus morreu junto com ele. Digressões à parte...

Assim, se uma mulher quer ser considerada de valor, ela deve obedecer a esses princípios sobre o uso do seu corpo, algo que só deveria dizer respeito a ela e a mais ninguém. Resumindo: a mulher deve ser obediente, o homem não precisa. Mulher desobediente é mulher sem valor. Alguns acham que isso é só uma crença recebida e perpetuada sem maiores problemas. Eu acho que é uma opressão covarde, perversa, injusta e sádica.

Além de proibir as pessoas de serem quem elas desejam ser, existe algo tão grave quanto isso: se você coloca um grupo de seres humanos acima de uma regra e outro grupo abaixo dessa regra, é lógico, evidente, que você sujeita este grupo àquele. É fácil inferir daí que o homem está acima da mulher. É fácil então inferir que a mulher deve ser submissa ao homem. Esse é o mecanismo básico de funcionamento do totalitarismo: os que estão no poder não são obrigados a seguir as mesmas regras que seguem os subjugados.

Isso é fato consolidado na relação entre homens e mulheres na nossa cultura. As regras ditadas costumam recair mais sobre elas. E não é só relativo ao sexo com desconhecidos, como no exemplo que dei acima. Podemos acrescentar uma longa lista que mostra que a maioria das pessoas (até algumas que juram não serem machistas) acha que a mulher deve ser obediente e o homem não. É mulher sem valor aquela que: usa roupa curta, fica embriagada, fala muito palavrão, faz sexo com muitas pessoas, passa a noite fora de casa, faz sexo extra-conjugal (sim, fica mais feio para a mulher do que para o homem), sai com prostitutos (isso para o homem é um pouco reprovável, mas mulher que faz isso é puro lixo), manda fotos íntimas para o namorado, fala o que pensa sem censura, toma iniciativa na paquera, arrota, peida na frente dos outros etc. Escolha uma dessas opções a seu gosto. Enfim, a maioria de nós acredita, mesmo que ache que não, que os homens estão acima de certos princípios, enquanto que a mulher deve ser submissa a esses mesmos princípios.

Em outras palavras: o papel da mulher é o de submissão, o do homem é o de dominância.

Então, quando alguém te perguntar "você acha que mulher boa é mulher obediente?", o que você responderá?

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

A hora do zepelim

Lá está o dirigível
Conectado à plataforma
E ninguém sabe tão bem
O destino dos que vão
Decola sempre lotado
E retorna sem ninguém

Uns sonham com um destino
De uma praia ou uma montanha
Uma ilha naturista
Habitada por mulheres

Outros dizem que o que volta
Nem a mesma nave é
Pois aquela que partira
Se tornou num hindenburg

É difícil decidir...
O que há nessa jornada?
Um delírio xamanista?
Um incêndio hidrogenado?
É um zepelim que leva
E o que volta, qual será?

Vai que nem destino tem
Ele apenas parta e vá..
Vá e vá e vá sem fim
E em algum dado momento
Cai nas bordas do planeta
E por lá se aniquile

Quanto mais o observo
Quanto mais me achego a ele
Menos medo ele me dá
Essa máquina infernal
De hidrogênio inflamável
Medo... pavor...
Mas quanto mais...
quanto mais convivência...
Menos medo...
mais conformação
 
Inclusive às vezes deixo
Uma mala lá no porto
Num armário lá por perto
Sob um lacre a cadeado
Mas não permito no entanto
Que se embarque uma sequer
E duvido que algum dia,
Uma delas lá embarque

Eu irei... mas as malas... sei lá se vale a pena

Chego lá com meia dúzia
Deixo duas, voltam quatro
Dou uns dias, recupero,
E levo todas pra casa,
E com mais uma semana,
Volto ao porto com mais doze
E mais doze cadeados

Dia desses inda embarco
Nesse voo sem destino
Ou talvez grande destino...
(vai saber)
No gigante zepelim

E ao partir este aeróstato
Que não fiquem lá parados
Olhar longe em meio ao cais
E que o céu seja renovo
E que nunca se resuma
A um estreito e curto cais
À espera de uma nave
Que não volta nunca mais.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

O suicídio do outro e a minha superioridade humana

Estou perplexo...

Começo meu texto dizendo isso. Mas vejo que não dá para prosseguir, sem antes deixar algumas definições que quero atribuir a termos que vou usar aqui neste texto:

Dogma: uma definição não embasada para algo, pela simples recusa de admitir falta de compreensão. Por exemplo, quando alguém desmaia na rua e eu não entendo o que aconteceu e digo que foi coisa do demônio, isso é dogma. Em vez de assumir “não sei por que ele desmaiou”, eu invento uma definição para parecer que sei. O dogma dá uma definição absoluta para algo e não alcança a complexidade das coisas. Diz que se eu faço X é porque eu sou Y. Não permite nuances nem múltiplas facetas do mundo. A religião é dogmática por excelência.

Senso crítico: se opõe ao dogma. É a capacidade inquieta de questionar. Você pode ter seus conceitos, mas você quer submetê-los a testes. Você busca embasamento para os conceitos e, se não achar, abre mão deles. Se achar, pode mantê-los ou achar que há outros ainda melhor embasados. Você questiona tudo e não acredita que definições encerram o assunto. Alguém com senso crítico não necessariamente nega a existência de absolutos, mas tem consciência de sua limitação que o impede de chegar a compreensões absolutas. A pessoa com senso crítico recusa-se a estabelecer normas ou definições para fenômenos que desconhece. Preferem dizer “eu não sei”. Citando, ao meu jeito, meu amigo poeta Antônio Patativa, o senso crítico é uma coisa das mais incomuns (Patativa fala “o bom senso é uma coisa das mais incomuns”, igualmente verdade).

Moral: moral é um conjunto de regras subjetivas que podem ter efeitos práticos ou não. Por exemplo, para um cristão, sexo casual é imoral. Para uma feminista, normalmente, não há imoralidade nisso. Para ela, reprimir isso é que seria imoral. É diferente da ética, onde o critério é objetivo. Tanto para um cristão quanto para uma feminista, assassinato é antiético, pois alguém está sendo prejudicado contra sua vontade.

Moralismo: é uma orientação filosófica que põe a moral no centro de toda relação. O problema do moralismo é que ele coloca a moral acima do ser humano. Assim, o moralista acredita-se melhor que o outro, pois segue uma moral superior a si mesmo. A diferença entre uma conduta moral e uma conduta moralista, ao meu ver, é a seguinte: se a minha moral fere o outro e eu percebo isso e mudo meus conceitos, estou sendo moral e ético. A dignidade e a realização humana estão acima da minha moral. Se minha moral traz infelicidade e, mesmo assim, prefiro mantê-la, sou moralista. A minha moral passa a ser mais importante do que a dignidade humana. Vide mil grupos se organizando para que o casamento gay permaneça ilegal. O moralismo torna o indivíduo insensível à dor humana.

Egocentrismo: atitude centrada em si mesmo, motivada pelo desejo de prazer ou o desejo de evitar o desprazer.

Dadas essas explicações, continuo. Estou perplexo. Hoje recebemos a notícia de que um cara se suicidou (para quem não sabe, o Champignon). Praticamente não ouvi nenhuma expressão de compaixão do tipo “esse homem devia estar num desespero terrível”. Ouço muito mais o dedo acusador farisaico “quem se mata é um babaca, é um egocêntrico, covarde, não tenho pena nenhuma”.

(Tomando fôlego bem profundamente).... vamos lá.

O SENSO CRÍTICO

Ordem da tomada de conhecimento: primeiro descobre-se, depois dão-se as definições.

Em primeiro lugar, eu gostaria de saber quem dessas pessoas conhece profundamente o assunto suicídio. Esse questionamento não é para provar que essas pessoas estão erradas, é apenas para mostrar que elas não entendem do que falam e, por isso, tentam trazer definições de forma tão absurda quanto tentar explicar uma frase em chinês sem conhecer nada dessa língua.

Eu não sei ler chinês. Quando eu vejo uma frase em chinês, eu não tento dizer “essa frase significa isso... tem aparência de significar...”. Eu digo “eu não sei, não entendo”. Pergunto a alguém que entenda chinês. Não estou satisfeito com a resposta? Pergunto a outro. Não estou satisfeito? Vou estudar chinês, para, com meus próprios conhecimentos, confirmar o teor da frase. A única coisa que eu não faço (se eu for inteligente), é tentar traduzir da minha cabeça na hora, sabendo que não entendo disso e afirmar que minha tradução está correta.

Volto a perguntar: quem aqui entende de suicídio? Alguém já quis se matar? Alguém conhece as diversas doenças que podem levar a tendências suicidas? Alguém é psicólogo ou psiquiatra ou até mesmo entusiasta curioso que tem aprofundamento na área, que viu estudos sérios relacionados ao suicídio ou fez pesquisas por conta própria? Bom, eu não. Assim, usando meu senso crítico, recuso-me a dar definições como “o homem que se suicida é (adjetivo a meu gosto)”.

A complexidade e múltiplas facetas do ser humano

Eu não entendo de suicídio. Mas uma coisa acho que entendo e todos hão de concordar: o ser humano é tão complexo, que, às vezes, nós mesmos fazemos coisas que nunca imaginávamos. Somos complexos. Se você está andando na rua e vê um homem bater em outro, você levanta mil hipóteses: 1. Ele bateu porque o outro o assaltou? 2. Foi porque o outro transou com sua mulher? 3. Foi porque ele é esquizofrênico e ouviu uma voz dizendo “bata nele”? 4. Foi porque o cara no meio da madrugada ligou para ele e disse “você não é homem para vir bater em mim”?

Posso passar o resto do dia dando opções. Não é um tanto estúpido se eu disser “o único motivo só pode ter sido chifre”? Claro, nada do que o ser humano faz tem apenas uma possibilidade como resposta. Não é meio estúpido dizer “atitude X sempre é causada por motivo Y”? Não é meio estúpido dizer “suicídio sempre é causado por covardia/babaquice”?

EGOCENTRISMO DO OUTRO, ALTRUÍSMO MEU

Estamos sempre acostumados a observar como os outros são egocêntricos e como deveriam ser mais altruístas como nós. Minha pergunta é: alguém aqui toma atitudes totalmente despidas do egocentrismo? Melhor: alguém aqui tem atitudes que não resultem num prazer pessoal ou em evitar o sofrimento pessoal?

Sinto muito informar: você é egocêntrico, eu sou egocêntrico, todos somos. E eu não acredito que existam pessoas mais egocêntricas que outras. O egocentrismo está sempre em 100% dentro de cada ser humano.

Se eu ajudo um mendigo, é porque fico feliz de vê-lo feliz, ou porque sinto que cumpri meu dever etc. Se adoro beber até tarde, mas abro mão disso pela minha esposa, é porque tenho prazer em vê-la feliz ou evito a chateação de ter que brigar com ela. Toda atitude humana tem uma finalidade: sentir prazer ou evitar o sofrimento próprio.

Nós não enxergamos o mundo fora de nós, enxergamos só o que nos cerca. O mundo sempre gira em torno de nós. Toda atitude é egocêntrica. Algumas prejudicam os outros por tabela, outras ajudam os outros por tabela. Sim, por tabela. Seu foco principal nunca será ajudar os outros, mas se sentir bem. Que bela coincidência é quando isso resulta no bem ao outro. Suicídio é um ato egocêntrico? Sim, mas nem mais nem menos do que os atos que fazemos no dia-a-dia.

E se buscamos a felicidade e evitamos a dor (Freud aborda interessantemente essa questão), torna-se até mesmo plausível o suicídio de uma pessoa que acreditou que a vida não possuía mais prazeres, apenas dores. Não estou dizendo que ele tirou a conclusão certa... mas que, se ele achou isso, o suicídio não é um grande contra-senso. Nossa vida está centrada em buscar o prazer e evitar a dor. Se alguém concluir que não há mais prazer e só há dor, por mais radical e precipitada conclusão que essa seja, ele vai querer morrer.

MORALISMO

Aqui é o ponto máximo. Já vimos como é estúpido nomear algo que não conhecemos, como é estúpido reduzir a uma possibilidade única algo que parte de um ser extremamente complexo e de como é despropositado que um egocêntrico acuse o egocentrismo alheio. Agora vamos a uma questão mais básica e mais triste de ver: falta de compaixão.

A primeira coisa que se pensa quando um cara se suicida deveria mesmo ser “puta babaca”? Não é preciso pensar muito para imaginar que esse cara estava sofrendo muito, a angústia que tomou conta da sua vida estava num nível insuportável. Ouvi argumentos como “que procurasse ajuda” etc. Não importa o quanto ele pode estar errado em se matar, a primeira coisa que vem à mente de uma pessoa é julgá-lo, antes mesmo de se compadecer da miséria alheia? Isso pra mim é mais grave. Os outros pontos são mera ignorância e falta de senso crítico. Este último toca algo mais forte: a capacidade de sentir dor com a dor do outro.

Aí entra o moralismo. Existe uma moral coletiva muito bem aceita de que o suicídio é errado. Não vejo problema em que cada um tenha sua moral. Meu problema é quando a moral nos torna insensíveis. É o momento em que passamos a ser moralistas. Era isso que os fariseus viviam fazendo. Eles viam as pessoas fazerem coisas que iam contra sua moral e não se preocupavam em saber se as pessoas sofriam. Só queriam dizer o quanto elas estavam erradas e o quanto eles estavam certos. Impunham mais e mais culpas sobre os outros com sua moral enferrujada, não só se recusando a amenizar a dor humana, mas, ao contrário, se esforçando por aumentá-la. Isso, meus amigos, é o efeito do moralismo.

Volto a falar do casamento gay. Existe um pensamento moral segundo o qual o casamento gay é errado. Mas, quando você percebe que alguém não poderá ser feliz sem o casamento gay e, mesmo assim, luta contra ele, você se tornou um moralista insensível. Você declara nitidamente: minha moral supera o valor da felicidade humana. Há aqueles que se revoltam contra os gays porque os gays estão revoltados. A moral deles os cegou para a sensibilidade que deixaria óbvio que, quem passou a vida apanhando moral e fisicamente, é óbvio que vai estar revoltado.

Isso me lembra alguns religiosos que conheci que diziam que não tinham pena de quem morreu na boate Kiss, pois estavam lá pecando. Qual a diferença entre essas pessoas e as que dizem que não têm pena do suicida? Nenhuma, a relação é clara: minha moral me diz que ele está errado, então a dignidade dele não me interessa mais. Lembram na Idade Média? O suicida nem direito a enterro tinha. Mas o problema... hm... é que a Idade Média já passou faz tanto tempo... e ainda continua no coração das pessoas.

Nenhum de vocês é superior ao outro porque o outro se suicidou ou fez o que quer que seja consigo mesmo diante da dor. Ele fez as merdas dele. Cuide você de limpar as suas próprias, pois cada um tem um rabo para limpar. Cada um é responsável pelo próprio rabo.

Se alguém se suicidou, é notório que estava vivendo intenso sofrimento. Não entro no mérito se ele fez certo ou não de se matar. Minha questão é que, se alguém está em intenso sofrimento, o mínimo de humanidade que se espera de mim é a compaixão.

Aliás, nenhuma atitude errada tira de alguém a dor anterior. Imagina que você está sofrendo muito, morreu um filho seu. Alguém te xinga na rua e você, já sem suportar de tristeza e estresse, vai lá e bate na pessoa. Sua atitude foi errada? Sim. Você deixou de ser alguém sofrido que merece compaixão? Não. Não cabe a ninguém mensurar a dor alheia e tentar dizer ao outro o que ele deve e o que ele não deve fazer diante de sua dor. Cabe a nós apenas sentirmos tristeza de ver que o mundo sofre. Não importa o que façam desse sofrimento, o sofrimento existe.

Eu já sofri muito, tenho vivido uma luta exaustiva contra o câncer há três anos. Mas a última coisa que eu toleraria seria alguém tentar me dizer como devo e como não devo reagir à minha dor. Eu sei onde dói e espero que os outros sejam sensíveis à minha dor, não importa o que eu faça por causa dela. Se não toleraria que fizessem sobre mim essas imposições de comportamento diante do sofrimento, tampouco posso tolerar que façam isso com os outros.

Por isso estou perplexo. A insensibilidade gerada pelo moralismo ainda me causa essa surpresa. Eu já deveria ter superado isso há muito tempo, pois moralismo e insensibilidade são extremamente comuns (e não o bom senso). No entanto, vida longa e feliz é o que desejo a cada um. 

segunda-feira, 29 de julho de 2013

De qual quadrilha faço parte?

Eu cheguei a uma reflexão, talvez pouco ortodoxa, mas que faz bastante sentido. O mundo é composto por bandidos, que estão divididos em dois tipos: os que a sociedade considera bandidos e os que a sociedade considera cidadãos de bem. Todos eles são bandidos, mas de facções diferentes. Sim, é isso que estou dizendo: somos todos bandidos.

Começo pontuando uma queixa frequente expressa pelo grupo dos cidadãos de bem: "Para um bandido, uma vida vale menos do que um celular ou uma carteira, isso é um absurdo". Queixa legítima, é mesmo um absurdo. Tem gente que morre mesmo por um celular. Mas esse mesmo cidadão de bem pega uma pessoa que está batendo carteira na rua ou furtando celulares, junta com mais uma quadrilha de cidadãos de bem e lincham o rapaz, às vezes até a morte. Espere um pouco! Não tínhamos acabado de dizer que uma vida valer menos que um celular ou uma carteira era um absurdo? Agora fiquei confuso.

Alguns justificam: mas ele me ameaçou de morte. Mas matou? Continua a velha história: o cara rouba seu celular, você consegue pegar ele e desce o pau, às vezes até a morte (ou atropela, como aconteceu recentemente e a população achou o máximo). Isso sem contar com os que não assaltaram a mão armada, cometiam apenas furtos. Ou seja, para você também a integridade física ou a vida humana vale menos que um celular. Perceba então que, por essa lógica, não há nada de errado em matar para roubar um celular. A vida humana, tanto para a quadrilha dos bandidos quanto para a quadrilha dos cidadãos de bem, vale menos do que um celular.

Outro exemplo: recentemente, um homem completamente bêbado ficou nu em uma festa de formatura. Um grupo de amigos meus falaram que, se estivessem lá com a namorada (sobretudo pela falta de respeito a ela), teriam entrado dando voadora nele, que a punição merecida seria o linchamento. Estamos de volta à moral em que a vida humana vale menos do que outros valores (agora, um dito pudor subjetivo de subjacência judaico-cristã). Não vou entrar no quão machista é essa partida em defesa da "inocência da minha indefesa namorada". Isso fica para outra discussão. A questão é: seria o ato de ficar pelado em público uma falta ou um crime mais grave do que lesão corporal (talvez grave) com o risco até de morte? Essa moral sexual é mais importante, novamente, do que a integridade física humana?

Enfim, acho que somos um bando de bandidos hipócritas tentando mostrar ao mundo que o crime do outro justifica o nosso. Que nós somos cidadãos de bem por praticar crimes contra quem pratica crimes (às vezes menores do que os nossos). Isso me faz pensar naquele cara que matou 50 pessoas queimadas vivas numa pilha de pneus, está no presídio e, quando chega um estuprador, arrebenta a cara dele. O motivo? Porque estupro é um crime inaceitável. Claro, afinal matar 50 pessoas queimadas vivas numa pilha de pneus é um crime adorável, né?

Vivemos em um mundo bandido em que a vida e a integridade humana está longe de ser o bem mais precioso. Somos um monte de bandidos hipócritas que apenas acham que a quadrilha rival está errada e a nossa quadrilha é uma pobre vítima defensora da boa sociedade. Pense nisso. Você acordou hoje se sentindo um cidadão de bem?