Angústia.
A mãe entra com o filho. O pai prefere ficar do lado de fora. Quer
ouvir o veredicto final de uma pessoa amada e não a palavra seca de
um profissional. Será o veredicto a pena capital? A mãe acompanha
seu filho, retraído, como que algemado, que, até pouco tempo atrás, prometia muitos anos e
sucessos incontáveis pela frente. O pai fuma um cigarro, para não
terminar de destruir as próprias unhas.
Mãe
e filho conversam sentados, esperando sua vez. Estão cheios de
papéis, envelopes e laudos lidos repetidas vezes sem conseguir
traduzir em português. Ela sorri para ele “põe nas mãos de Deus”
enquanto, em pensamentos, fala “Deus, tão cedo? Deus, antes de
mim?”. Uma mulher sai de uma sala, chama o nome do rapaz. Para os
esperançosos, aquela voz soa suave, como a última dor que precede o
alívio. Não é o que ouve a mãe. Ouve muito mais a voz de um
meirinho que diz “todos de pé”, antes do pronunciamento do juiz: condeno o réu à morte.
Entram
na sala. Finalmente um profissional lerá os papeis. Um homem de
autoridade. Ele abre todos os envelopes. Folhas e mais folhas de
imagens que só podem ser vistas contra a luz. Ele coloca todas as
catorze folhas de imagens sobre o negatoscópio, uma a uma. Faz valer
a teoria da relatividade. Cerca de cinco minutos, que, para a mãe,
parecem ser uma vida de torturas no inferno, criação de Deus para
puni-la sabe-se lá por que crime. Senta-se à mesa, diante deles, e
lê cada um dos três laudos do extenso e exaustivo processo. Fica
calado.
Do
lado de fora, o pai acende outro cigarro. Seu rosto diz “não tenho
nada que ver aqui”, enquanto a si mesmo grita “se, em vez dele,
fosse eu, eu seria feliz”. Repete consigo “não vai dar nada...
não vai dar nada”. Em um nível mais profundo da consciência,
fala “não tente mentir para si mesmo”. Na menor expressão dessa
voz profunda, acende mais um. O tremor violento das mãos dificulta
mirar o fogo do isqueiro na ponta do cigarro.
A
mãe lembra dos tempos de infância do seu filho. Demorou a falar.
Acho que vai crescer cheio de problemas de linguagem e de dicção. O
pai pensa conectadamente “quem diria... virou poliglota logo quem
eu achava que nem em português se daria bem”. Era extremo. Sempre
foi. Se irritava fácil. Criança exagerada aquela, pensam os dois.
Se não dessem bola pro que falava, fechava a cara e saía do recinto
fora de si.
Extremo
em tudo. Se brigava com os irmãos, sentia um ódio tão forte, que
gastava toda a cota de uma vez só. Pouco tempo depois, os amava como
se nada tivesse acontecido. Quando discorda de nós, discorda
visceralmente, acredita no oposto total. Extremo em tudo, inclusive
na sua repressão do choro. Igual a hoje. Não chora nada.
O
homem de autoridade diz: vai ser grande. A mãe tenta entender por
quê. Lembra de tudo grande. O rapaz espera tudo grande. Vou pilotar
Concordes, estudar na melhor instituição possível. Cada sentimento
era grande. Esse meu filho ama grande, odeia grande, perdoa grande,
guarda rancores grandes. Não me surpreende. Tudo é grande. Isso
agora... não podia ter algo nele que não fosse extremo? Pelo menos
isto agora?
O
homem diz: há chances. Mas logo isso... logo isso na vida dele não
era grande. Chance. O pai pensa lá fora “que demora é essa? Assim
vamos perder o almoço”. Tentava se convencer de que o maior
problema deles agora era o almoço. “Prepare-se” é o que diz o
homem de autoridade.
Saem
de lá com a mente flutuando nas nuvens do submundo. Um pensamento
tão sombrio, que sequer eles mesmos podem identificar. A mãe e o
pai se encontram na saída. Há silêncio entre eles. Mas ressoa
milhares de vezes um eco demoníaco “Prepare-se! Prepare-se!
Prepare-se!”. Que bom... não perdemos o horário do almoço. É lá
que tudo se encontra. É lá que tudo se desencontra. O horário do
almoço foi felicidade para pai e mãe ao longo da vida, vendo o
filho contando suas vitórias. Nesse mesmo horário, se irritaram com
os pensamentos absurdos, contrários à fé, aos bons costumes e à
moral da família. Você almoça com alguém todos os dias e passa a
saber mais do que gostaria.
É
por isso que o pai insistiu a vida toda, todos almoçam ao mesmo
tempo e na mesa. Sem TV, sem sofá. Na mesa. Quem não almoça junto
não conversa. Não dialoga. Afinal, a TV faz isso pela gente.
Família que não almoça junto é família desunida, um bando de
estranhos dentro da mesma casa.
Pai
e mãe, aparência forte, nunca choraram na frente dos filhos.
Sentam-se todos à mesa. E, como tem que ser em qualquer boa refeição
em família, o pensamento sai, o escondido aparece. Não foi dita uma
palavra até então. E, no silêncio da mãe, o pai escuta quase que
telepaticamente: vai ser grande. E chora. Chora com amargura tal, que mais
parece que o luto já começou. O choro do pai mais parece um vírus
de contágio extremo, que atinge a todos os presentes. O filho diz
“vai dar certo” e chora enclausurado.
Não
há luz no ambiente. Ninguém enxerga um gafanhoto pousado no próprio
nariz. Com o sol forte do mês de janeiro, nada mais se vê do que
névoa, trevas, como se todos já estivessem no hades, local do maior
paradoxo: fogo e escuridão. E como fazem todo pai e mãe, há uma
invasão de pensamentos “parece que foi ontem”.
Que
pensamento imoral é esse de ele dá e ele tira? Se uma criança não
sabe o que é um chocolate, não chora por ele. Quem é esse que dá
um chocolate a uma criança e depois tira? Que prazer mórbido se tem
em deliciar-se das lágrimas da criança? E pai e mãe pensam coisas
muito parecidas. Pois nós vemos entrar no mundo, mas não queremos
estar presentes para ver sair.
Que
espécie de mundo sombrio é esse em que tenho que assistir de perto
minha maior vitória ser enterrada ao lado dos meus pais? O que é
meu é dele! Mas minha casa, cheia de vida, quero deixar para ele,
não um terreno cimentado. Não... nesses termos, a vida não existe.
Posso continuar respirando, coração bombeando sangue, mas, desse
jeito, não tenho mais vida.
Pai
e mãe se permitem o impensável. Questionamento imoral, infiel,
desleal. Há de fato um Deus? Prove! Não parece! Quase
imediatamente, auto-repreensão e pavor: quem sou eu para questionar?
Eu tinha esse direito? Existe e tomara que não me castigue
merecidamente ainda mais pelo meu desaforo. Deus é vingativo e
zombeteiro. Com Deus não se brinca. Pedem perdão, assim como a
vítima da tortura implora piedade ao chefe da máfia.
Pai
e mãe não trocam uma palavra. Mas ambos sabem o que o outro sente.
As chances não são nulas. É, mas são pequenas! Só que não
nulas! Filho, vai dar certo. Sim, eu sei. Não... ninguém sabe. Vai
dar certo. Como? Que certeza é essa? Não! Ninguém sabe!!
As
chances são pequenas. Existem. Em algum lugar, existem. Sim, há
chances. Não tem tratamento certeiro. Mas há chances. Respiram
aliviados. Não dá pra chorar o tempo todo. Tem que haver um alívio.
Ninguém suportaria a vida se não existisse alívio. Tem um alívio,
uma esperancinha, uma chance. Só sentimos fome porque podemos
solucioná-la. A angústia da fome não é páreo para a chance de
comer. Há sempre uma chance. É nisso que se baseia a glória de
Deus. Fazer sofrer para poder salvar e ganhar os créditos só pela
parte boa. Perdão Senhor, quem somos nós?
Recebem
a ligação. Podem vir. Todos têm medo, confiança, pavor, alívio.
Seu filho pode ficar bom. Obrigado doutor... salve-o. Vou tentar.
Cirurgia sem dúvida? Sim... tá tudo espalhado. Pai e mãe,
pensamentos em turbilhões. Mãe, quanta demora, cadê as notícias.
Pai, entreguei um vivo, não quero receber um saco. Mãe, Deus põe
as mãos. Pai, não pode... não pode... tem que dar, senão não
quero mais nada. Pai e mãe, doutor?! Conseguimos! Agora é torcer
pelo resto... nada é garantido, mas há uma chance. Preparem-se para tudo.
8 comentários:
Ok, agora sim, finalmente acertou a mão.
Sensacional narrativa.
Me fez chorar. E no táxi! Tão bom passar vergonha por coisas boas! hahaha muito bem escrito, senhor Vilela. Fiquei aflita enquanto lia. Dessas sensações que textos bons causam. ;)
Excelente. Sem mais!
Faço das palavras de Dirceu as minhas palavras.
Gente, que narrativa é essa?
Vivi um pouco do que os personagens sentiram, em cada pedaço do texto.
Me emocionou.
ficou do caralho! O texto, a ideia!
Que texto! Sem palavras. Eu que conheci, esse ser incrível. Saudades!
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