quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Sobre a tortura e a reabilitação de criminosos

Eu me envolvi recentemente em mais um debate a respeito do tratamento que recebem os presidiários no Brasil. Quem sempre me acompanha sabe e não ficará surpreso que eu diga que sou contra todo tipo de maus-tratos, torturas físicas ou psicológicas a quem quer que seja. Mesmo que seja bandido. No entanto, minha conclusão não se deu por algum achismo sem base alguma. Tenho minhas bases. Todas refutáveis, claro. O comportamento científico começa exatamente no refutável. Nada é assim e ponto final. Explicarei minhas bases, mas vou começar mencionando duas falácias que você sempre ouvirá se defender o ponto de vista que eu defendo.

FALÁCIA DO APELO À EMOÇÃO

“Você fala isso porque o bandido não fez nada com alguém da sua família”. Vejam bem, este argumento serve para defender ambos os lados. “Você defende a pena de morte porque seu filho nunca foi preso por assassinato”. Se um argumento pode facilmente ser adaptado e usado pelos dois lados, este argumento não tem validade alguma na discussão.

Além disso, minha ética é baseada em reflexões racionais. Meu estado emocional em relação a algo nada diz sobre a minha ética. Assim sendo, sou contra torturar um estuprador. Se ele, um dia, estuprar minha filha, talvez eu queira torturá-lo. Só que minhas emoções não ditam ética, mas sim, minhas reflexões. Se é errado torturar alguém, não passa a ser certo no momento em que estou emocionalmente envolvido e meus desejos dizem para fazê-lo. Da mesma forma que, se a pena de morte for correta, não passará a ser incorreta só porque o condenado é o meu filho.

Por fim, este argumento traz à tona uma segunda falácia. Não sei como a chamam os estudiosos da argumentação lógica. Vou chamá-la de falácia da alternativa binária.

FALÁCIA DA ALTERNATIVA BINÁRIA

Neste argumento, você reduz todos os milhares de possibilidades que o mundo oferece a apenas duas escolhas. Assim, ou você é a favor de maltratar bandido, ou é porque você nunca sofreu nas mãos de um. Já posso contestar isso facilmente, visto que eu e familiares meus já passamos por poucas e boas nas mãos de bandidos. Não vale a pena detalhar.

Outra falácia da alternativa binária é quando alguém diz que você, por pensar assim, defende bandido, está com pena. Você deve levá-lo para casa (reductio ad absurdum). Ou seja, só existem duas opções: ou você é a favor da tortura, ou você é um defensor de bandidos que deveria adotá-los e cuidar deles em sua casa. Este argumento é tão desonesto, que não preciso explicar muito. É notório que a própria pessoa que argumenta isso sabe que não existem apenas estas duas opções.
Vamos aos motivos por que eu acredito que um tratamento digno é o melhor para todos.

HISTÓRIA DA HUMANIDADE

Creio que, antes de fazer qualquer reflexão sobre temas sociais, é estritamente necessário que se pense no passado. Como sempre ouvimos dizer, é preciso entender o passado para saber o que fazer no presente.

Bom, não é mistério para ninguém que a tortura e as execuções cruéis nem sempre foram ilegais. Ao contrário, já fizeram parte das atribuições legais do Estado. Na Antiguidade, certas civilizações matavam adúlteros por apedrejamento (isso, infelizmente, ainda existe em alguns lugares). Na Inquisição, as torturas faziam parte do aparato do Estado. Mas, se esses métodos eram legais, por que deixaram de ser?

É preciso que compreendamos que a humanidade acumula conhecimento ao longo do tempo. Se ela muda seu comportamento, é porque percebeu que a maneira como estava agindo não estava funcionando e precisou se adaptar e buscar novas estratégias. Eu comparo isto à fala de um cientista. Quando um cientista de uma área afirma algo sobre seu domínio de estudos, não é sábio refutar sumariamente. Isto porque, se ele é cientista da área, ele tem alguma base. Por favor, não confundam isto com apelo à autoridade. É perfeitamente possível que você busque saber suas bases e conclua que são frágeis e não merecem credibilidade. Mas, para testá-las, é preciso, ao menos, que se fuja da refutação sumária. Não será sábio refutá-lo sem antes perguntar: baseado em que você diz isso?

Assim é com a nossa história. Se tivemos várias experiências no assunto e o Estado abandonou certas práticas (pelo menos no papel), cabe a nós perguntar: por que isso aconteceu? Durante o debate recente, ouvi o argumento: “ok, houve progressos... mas tornar ilegal a tortura foi um retrocesso”. Será?

FATOS

Em um mundo cheio de experiências num assunto, os achismos não nos cabem. É assim que se trabalha cientificamente. Levantamos hipóteses que precisam ser testadas. Eu tenho mestrado em linguística. Na minha dissertação, eu levantei três hipóteses. Após testá-las através de cuidadosa coleta de dados científicos, pude confirmar duas delas e fui obrigado a refutar uma. Ou seja, eu achava uma coisa e os meus dados, após pesquisa, me convenceram do contrário. Quando se tem dados, não adianta ficar dando voltas sem eles. Ou usamos os que temos, ou nos engajamos em uma pesquisa para completá-los.

A humanidade tem uma larga experiência em sociedades que torturam seus presos e sociedades que não os torturam. Se não existisse essa experiência, seria compreensível ficarmos no achismo, até que um estudo sério fosse realizado. Mas não é o caso. Temos dados e dados de sobra. E o que temos descoberto?

Descobrimos que as sociedades que menos praticam torturas a bandidos são também aquelas que vivem com baixa criminalidade e baixa reincidência no crime. Podemos citar a Suécia, Finlândia, Dinamarca, Noruega e Japão. Algumas delas, inclusive, aplicam penas menos severas que países como o Brasil (21 anos é a pena máxima, na Noruega). Para dar um exemplo, segundo matéria da Conjur, a Suécia reabilita 80% dos seus presos. Há, entre os estadunidenses, severas críticas à Noruega, afirmando que o país mantém "presídios de luxo", coisa que os EUA não fazem. Mas de nada vale todo esse falatório, quando a Noruega, empatada com o seu vizinho, reabilita 80% dos seus apenados, enquanto os EUA, apenas 40% (em suas prisões onde se constatam também tratamentos degradantes).

Do outro lado, fica claro que as sociedades que mais praticam tortura são também aquelas com maior taxa de criminalidade e maior taxa de retorno ao crime após a liberdade. Dentre elas, Brasil, Índia e vários países africanos. Enquanto, na Suécia, a taxa de reabilitação é de 80%, no Brasil, segundo a OMS, nossa taxa é de 72%. Mas não se animem! No nosso caso, essa taxa é de reincidência, não de reabilitação.

Retrocesso?

Se a sua prioridade for diminuir a taxa de criminalidade e de reincidência, para a construção de uma sociedade mais segura, não vejo outra opção senão a de concordar que o banimento total da tortura é progresso. Se a sua prioridade for a vingança e o sofrimento de quem causou problemas, mesmo que isto signifique uma sociedade mais criminosa e com menor índice de regeneração, então isto é retrocesso. Eu creio num Estado que tem a função de acabar com o crime e evitar que ele se repita e não de vingá-lo. Aí alguém pode dizer: “pena de morte é a saída. Um morto não pratica crimes”.

Aí está um outro problema. A pena de morte, além de, comprovadamente, não refrear a criminalidade e se configurar num tipo de tortura psicológica, tem graves efeitos colaterais na sociedade. Ao executar um prisioneiro, você deixa um filho órfão, uma mulher viúva, e faz uma mãe enterrar seu próprio filho. Você pune dezenas de pessoas pelo crime de uma. Claro que não queremos entregar um assassino de volta à sua família. O que desejo é pegar um assassino, transformá-lo num cidadão ético e honesto e devolver um bom pai, bom marido e bom filho à sua família.

“Ah, mas tem gente que não tem recuperação”. Mostre-me dados e bases sólidas para afirmar isso e eu vou ser obrigado a concordar com você. O fato é que as experiências em países que aplicam penas mais humanas mostram o contrário. Na Holanda e na Suécia, por exemplo, está havendo um fenômeno de fechamento de presídios, pois existem celas demais para presos de menos. Enquanto isso, no Brasil, faltam celas. Daqui a pouco, vamos ter que deixar condenados na rua porque não tem mais onde colocar.

O tratamento desumano a presos é a primeira reação que temos. Gostamos de ver sofrer quem faz sofrer. Instinto de vingança é natural e eu não me excluo disso. Quando fui assaltado, senti vontade de espancar os caras. Evoluímos para ver circunstâncias imediatas e tomar medidas imediatas. E assim, ter recompensa imediata. Assim era na selva e esta memória dos nossos ancestrais está forte no nosso cérebro. Mas também somos dotados de raciocínio lógico e temos como ir mais longe do que o imediato. Aprendemos que a recompensa imediata nem sempre é a melhor a longo prazo. Possuímos um raciocínio que nos permite ir além e nos aprofundar em questões que não estão óbvias diante dos nossos olhos. Cabe a nós usá-lo ou fazer prevalecer nossos instintos mais primitivos e emocionais.

CONCLUINDO

Assim sendo, sou contra todo tipo de tratamento desumano a presos. Não porque tenho peninha, não porque defendo bandido, não porque eu acho isso e pronto. Mas porque acredito que temos experiências no mundo o suficiente para dizer que a tortura já se mostrou ineficiente, já se mostrou, inclusive, grande estimuladora da reincidência criminal, enquanto que o tratamento humano e digno já se mostrou propiciador de uma sociedade mais saudável não só para os condenados, mas para aqueles que estarão esperando por eles do lado de fora.

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