segunda-feira, 9 de setembro de 2013

O suicídio do outro e a minha superioridade humana

Estou perplexo...

Começo meu texto dizendo isso. Mas vejo que não dá para prosseguir, sem antes deixar algumas definições que quero atribuir a termos que vou usar aqui neste texto:

Dogma: uma definição não embasada para algo, pela simples recusa de admitir falta de compreensão. Por exemplo, quando alguém desmaia na rua e eu não entendo o que aconteceu e digo que foi coisa do demônio, isso é dogma. Em vez de assumir “não sei por que ele desmaiou”, eu invento uma definição para parecer que sei. O dogma dá uma definição absoluta para algo e não alcança a complexidade das coisas. Diz que se eu faço X é porque eu sou Y. Não permite nuances nem múltiplas facetas do mundo. A religião é dogmática por excelência.

Senso crítico: se opõe ao dogma. É a capacidade inquieta de questionar. Você pode ter seus conceitos, mas você quer submetê-los a testes. Você busca embasamento para os conceitos e, se não achar, abre mão deles. Se achar, pode mantê-los ou achar que há outros ainda melhor embasados. Você questiona tudo e não acredita que definições encerram o assunto. Alguém com senso crítico não necessariamente nega a existência de absolutos, mas tem consciência de sua limitação que o impede de chegar a compreensões absolutas. A pessoa com senso crítico recusa-se a estabelecer normas ou definições para fenômenos que desconhece. Preferem dizer “eu não sei”. Citando, ao meu jeito, meu amigo poeta Antônio Patativa, o senso crítico é uma coisa das mais incomuns (Patativa fala “o bom senso é uma coisa das mais incomuns”, igualmente verdade).

Moral: moral é um conjunto de regras subjetivas que podem ter efeitos práticos ou não. Por exemplo, para um cristão, sexo casual é imoral. Para uma feminista, normalmente, não há imoralidade nisso. Para ela, reprimir isso é que seria imoral. É diferente da ética, onde o critério é objetivo. Tanto para um cristão quanto para uma feminista, assassinato é antiético, pois alguém está sendo prejudicado contra sua vontade.

Moralismo: é uma orientação filosófica que põe a moral no centro de toda relação. O problema do moralismo é que ele coloca a moral acima do ser humano. Assim, o moralista acredita-se melhor que o outro, pois segue uma moral superior a si mesmo. A diferença entre uma conduta moral e uma conduta moralista, ao meu ver, é a seguinte: se a minha moral fere o outro e eu percebo isso e mudo meus conceitos, estou sendo moral e ético. A dignidade e a realização humana estão acima da minha moral. Se minha moral traz infelicidade e, mesmo assim, prefiro mantê-la, sou moralista. A minha moral passa a ser mais importante do que a dignidade humana. Vide mil grupos se organizando para que o casamento gay permaneça ilegal. O moralismo torna o indivíduo insensível à dor humana.

Egocentrismo: atitude centrada em si mesmo, motivada pelo desejo de prazer ou o desejo de evitar o desprazer.

Dadas essas explicações, continuo. Estou perplexo. Hoje recebemos a notícia de que um cara se suicidou (para quem não sabe, o Champignon). Praticamente não ouvi nenhuma expressão de compaixão do tipo “esse homem devia estar num desespero terrível”. Ouço muito mais o dedo acusador farisaico “quem se mata é um babaca, é um egocêntrico, covarde, não tenho pena nenhuma”.

(Tomando fôlego bem profundamente).... vamos lá.

O SENSO CRÍTICO

Ordem da tomada de conhecimento: primeiro descobre-se, depois dão-se as definições.

Em primeiro lugar, eu gostaria de saber quem dessas pessoas conhece profundamente o assunto suicídio. Esse questionamento não é para provar que essas pessoas estão erradas, é apenas para mostrar que elas não entendem do que falam e, por isso, tentam trazer definições de forma tão absurda quanto tentar explicar uma frase em chinês sem conhecer nada dessa língua.

Eu não sei ler chinês. Quando eu vejo uma frase em chinês, eu não tento dizer “essa frase significa isso... tem aparência de significar...”. Eu digo “eu não sei, não entendo”. Pergunto a alguém que entenda chinês. Não estou satisfeito com a resposta? Pergunto a outro. Não estou satisfeito? Vou estudar chinês, para, com meus próprios conhecimentos, confirmar o teor da frase. A única coisa que eu não faço (se eu for inteligente), é tentar traduzir da minha cabeça na hora, sabendo que não entendo disso e afirmar que minha tradução está correta.

Volto a perguntar: quem aqui entende de suicídio? Alguém já quis se matar? Alguém conhece as diversas doenças que podem levar a tendências suicidas? Alguém é psicólogo ou psiquiatra ou até mesmo entusiasta curioso que tem aprofundamento na área, que viu estudos sérios relacionados ao suicídio ou fez pesquisas por conta própria? Bom, eu não. Assim, usando meu senso crítico, recuso-me a dar definições como “o homem que se suicida é (adjetivo a meu gosto)”.

A complexidade e múltiplas facetas do ser humano

Eu não entendo de suicídio. Mas uma coisa acho que entendo e todos hão de concordar: o ser humano é tão complexo, que, às vezes, nós mesmos fazemos coisas que nunca imaginávamos. Somos complexos. Se você está andando na rua e vê um homem bater em outro, você levanta mil hipóteses: 1. Ele bateu porque o outro o assaltou? 2. Foi porque o outro transou com sua mulher? 3. Foi porque ele é esquizofrênico e ouviu uma voz dizendo “bata nele”? 4. Foi porque o cara no meio da madrugada ligou para ele e disse “você não é homem para vir bater em mim”?

Posso passar o resto do dia dando opções. Não é um tanto estúpido se eu disser “o único motivo só pode ter sido chifre”? Claro, nada do que o ser humano faz tem apenas uma possibilidade como resposta. Não é meio estúpido dizer “atitude X sempre é causada por motivo Y”? Não é meio estúpido dizer “suicídio sempre é causado por covardia/babaquice”?

EGOCENTRISMO DO OUTRO, ALTRUÍSMO MEU

Estamos sempre acostumados a observar como os outros são egocêntricos e como deveriam ser mais altruístas como nós. Minha pergunta é: alguém aqui toma atitudes totalmente despidas do egocentrismo? Melhor: alguém aqui tem atitudes que não resultem num prazer pessoal ou em evitar o sofrimento pessoal?

Sinto muito informar: você é egocêntrico, eu sou egocêntrico, todos somos. E eu não acredito que existam pessoas mais egocêntricas que outras. O egocentrismo está sempre em 100% dentro de cada ser humano.

Se eu ajudo um mendigo, é porque fico feliz de vê-lo feliz, ou porque sinto que cumpri meu dever etc. Se adoro beber até tarde, mas abro mão disso pela minha esposa, é porque tenho prazer em vê-la feliz ou evito a chateação de ter que brigar com ela. Toda atitude humana tem uma finalidade: sentir prazer ou evitar o sofrimento próprio.

Nós não enxergamos o mundo fora de nós, enxergamos só o que nos cerca. O mundo sempre gira em torno de nós. Toda atitude é egocêntrica. Algumas prejudicam os outros por tabela, outras ajudam os outros por tabela. Sim, por tabela. Seu foco principal nunca será ajudar os outros, mas se sentir bem. Que bela coincidência é quando isso resulta no bem ao outro. Suicídio é um ato egocêntrico? Sim, mas nem mais nem menos do que os atos que fazemos no dia-a-dia.

E se buscamos a felicidade e evitamos a dor (Freud aborda interessantemente essa questão), torna-se até mesmo plausível o suicídio de uma pessoa que acreditou que a vida não possuía mais prazeres, apenas dores. Não estou dizendo que ele tirou a conclusão certa... mas que, se ele achou isso, o suicídio não é um grande contra-senso. Nossa vida está centrada em buscar o prazer e evitar a dor. Se alguém concluir que não há mais prazer e só há dor, por mais radical e precipitada conclusão que essa seja, ele vai querer morrer.

MORALISMO

Aqui é o ponto máximo. Já vimos como é estúpido nomear algo que não conhecemos, como é estúpido reduzir a uma possibilidade única algo que parte de um ser extremamente complexo e de como é despropositado que um egocêntrico acuse o egocentrismo alheio. Agora vamos a uma questão mais básica e mais triste de ver: falta de compaixão.

A primeira coisa que se pensa quando um cara se suicida deveria mesmo ser “puta babaca”? Não é preciso pensar muito para imaginar que esse cara estava sofrendo muito, a angústia que tomou conta da sua vida estava num nível insuportável. Ouvi argumentos como “que procurasse ajuda” etc. Não importa o quanto ele pode estar errado em se matar, a primeira coisa que vem à mente de uma pessoa é julgá-lo, antes mesmo de se compadecer da miséria alheia? Isso pra mim é mais grave. Os outros pontos são mera ignorância e falta de senso crítico. Este último toca algo mais forte: a capacidade de sentir dor com a dor do outro.

Aí entra o moralismo. Existe uma moral coletiva muito bem aceita de que o suicídio é errado. Não vejo problema em que cada um tenha sua moral. Meu problema é quando a moral nos torna insensíveis. É o momento em que passamos a ser moralistas. Era isso que os fariseus viviam fazendo. Eles viam as pessoas fazerem coisas que iam contra sua moral e não se preocupavam em saber se as pessoas sofriam. Só queriam dizer o quanto elas estavam erradas e o quanto eles estavam certos. Impunham mais e mais culpas sobre os outros com sua moral enferrujada, não só se recusando a amenizar a dor humana, mas, ao contrário, se esforçando por aumentá-la. Isso, meus amigos, é o efeito do moralismo.

Volto a falar do casamento gay. Existe um pensamento moral segundo o qual o casamento gay é errado. Mas, quando você percebe que alguém não poderá ser feliz sem o casamento gay e, mesmo assim, luta contra ele, você se tornou um moralista insensível. Você declara nitidamente: minha moral supera o valor da felicidade humana. Há aqueles que se revoltam contra os gays porque os gays estão revoltados. A moral deles os cegou para a sensibilidade que deixaria óbvio que, quem passou a vida apanhando moral e fisicamente, é óbvio que vai estar revoltado.

Isso me lembra alguns religiosos que conheci que diziam que não tinham pena de quem morreu na boate Kiss, pois estavam lá pecando. Qual a diferença entre essas pessoas e as que dizem que não têm pena do suicida? Nenhuma, a relação é clara: minha moral me diz que ele está errado, então a dignidade dele não me interessa mais. Lembram na Idade Média? O suicida nem direito a enterro tinha. Mas o problema... hm... é que a Idade Média já passou faz tanto tempo... e ainda continua no coração das pessoas.

Nenhum de vocês é superior ao outro porque o outro se suicidou ou fez o que quer que seja consigo mesmo diante da dor. Ele fez as merdas dele. Cuide você de limpar as suas próprias, pois cada um tem um rabo para limpar. Cada um é responsável pelo próprio rabo.

Se alguém se suicidou, é notório que estava vivendo intenso sofrimento. Não entro no mérito se ele fez certo ou não de se matar. Minha questão é que, se alguém está em intenso sofrimento, o mínimo de humanidade que se espera de mim é a compaixão.

Aliás, nenhuma atitude errada tira de alguém a dor anterior. Imagina que você está sofrendo muito, morreu um filho seu. Alguém te xinga na rua e você, já sem suportar de tristeza e estresse, vai lá e bate na pessoa. Sua atitude foi errada? Sim. Você deixou de ser alguém sofrido que merece compaixão? Não. Não cabe a ninguém mensurar a dor alheia e tentar dizer ao outro o que ele deve e o que ele não deve fazer diante de sua dor. Cabe a nós apenas sentirmos tristeza de ver que o mundo sofre. Não importa o que façam desse sofrimento, o sofrimento existe.

Eu já sofri muito, tenho vivido uma luta exaustiva contra o câncer há três anos. Mas a última coisa que eu toleraria seria alguém tentar me dizer como devo e como não devo reagir à minha dor. Eu sei onde dói e espero que os outros sejam sensíveis à minha dor, não importa o que eu faça por causa dela. Se não toleraria que fizessem sobre mim essas imposições de comportamento diante do sofrimento, tampouco posso tolerar que façam isso com os outros.

Por isso estou perplexo. A insensibilidade gerada pelo moralismo ainda me causa essa surpresa. Eu já deveria ter superado isso há muito tempo, pois moralismo e insensibilidade são extremamente comuns (e não o bom senso). No entanto, vida longa e feliz é o que desejo a cada um. 

5 comentários:

Priscilla disse...

Fico admirada com tua paciência de sentar e escrever sobre. Esse tipo de gente e seus comentários são exaustivos, apenas filtro e retiro dos feeds e da timeline. Nada a acrescentar, querido. Assino embaixo um milhão de vezes.

Fred Delgado disse...

Ótimo.

É o que sempre falo quando escuto desdém sobre o sofrimento do outro: não mensure a dor. Não compare dores.

Se Fulano agüentou perder a família num acidente de carro, ficar paraplégico e continuar a viver a vida "normalmente", isso jamais significará para mim que Cicrano que acabou o namoro de um ano e se matou, sofreu menos que o primeiro.

Cada um sabe até onde agüenta com a dor.

Fico feliz por Fulano conseguir seguir em frente mas em momento algum fico indignado com a atitude de Cicrano. Ele fez o que acha que deveria ser feito com a própria existência.

Unknown disse...

O texto é bem reflexivo, questionador, intenso, emocionante aos olhos de quem quer enxergar o valor das pessoas, o valor da vida, o valor do próximo..concordo 90% do que foi exposto..."acusação, julgamento, pré-conceitos, frieza, são palavras chave desse texto/tese que põe em cheque nosso pensar imediatista! ÓTIMA REFLEXÃO!

"penso, logo existo"

Unknown disse...

o que eu li eu gostei so q to com sono e não tenho muita paciencia pra ficar lendo mas parabéns kara vc é um ótimo humorista, e comediante bj

Anônimo disse...

Sou totalmente leigo em filosofia, não tenho formação na área e leio aleatoriamente sobre isso, mas vi que vc analisou a questão do ponto de vista da filosofia utilitarista centrando a questão no prazer e na dor, mas gostaria que vc voltasse a tratar do tema sob a ótica kantiana centrada na questão da dignidade humana. E também que a ideia do suicídio pode acometer uma pessoa não por um sofrimento circunstancial mas por não ver sentido na existência. Kant considera o suicídio tão moralmente condenável quanto o suicídio. Tenho minhas dúvidas sobre isso.