segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Outro?

1ª fase

Uma tribo vivia isolada no meio de uma selva. Eles não conheciam nenhum povo diferente deles. Não passava na cabeça deles que pudesse existir outras línguas, outros costumes, outras religiões. A palavra “outro” sequer existia em sua língua. Eles não davam nome à sua língua, pois não sabiam que poderia existir outra maneira da falar e pensar. Essa tribo não tinha nome. Não precisava, pois eles acreditavam que não existia outra tribo no mundo. Eles tinham certeza de que seu modo de viver era o único no mundo. Eram totalmente ignorantes sobre o mundo além do seu. Mas algo surpreendente aconteceu. Surgiram visitantes de outro lugar do planeta. Era muito estranho para eles ver gente que se vestia diferente, falava diferente.

2ª fase

Mas eles finalmente tinham conhecido algo diferente. No entanto, nada da cultura diferente era considerado plausível. Vou tomar como exemplo aqui e até o final da história a língua (assim como ocorreu com religião, costumes, tabus etc). Quando escutaram aquele povo visitante falar, não consideraram a hipótese de estarem falando outra língua. A única língua existente era a deles. Provavelmente, os visitantes eram tão burros, que não sabiam falar. Tentavam, faziam esforço, buscavam tirar sons garganta afora, mas só o que faziam eram ruídos. A tribo não considerava nem de longe a hipótese de haver outras formas de falar. Eles tinham certeza de que o povo visitante não falava, apenas grunhia.

3ª fase

Após analisarem por meses, começaram a aceitar a possibilidade de a língua dos visitantes ser uma língua de fato. Mas, mesmo assim, não poderia ser uma língua tão boa quanto a deles. Não dava para entender nada, era desconexa e os sons da língua eram feios. Eles perderam a certeza de falar a única língua do mundo, mas tinham certeza de falar a única língua boa, correta e lógica do mundo. Era inadmissível colocar aquela língua bizarra e ininteligível dos visitantes como correta. Com certeza, deveria ser rústica, mal estruturada e com uma gramática praticamente inexistente.

4ª fase

Alguns começaram a querer falar a língua dos visitantes. E surpresa! Descobriram que era um idioma bem estruturado e igualmente eficiente. No entanto, tinha termos inúteis, que falavam de coisas que não existiam. Eles tinham certeza de que palavras como “avião” ou “dinossauro” eram completamente inúteis, pois descreviam coisas imaginárias e sem razão de se imaginar.

5ª fase

Alguns resolveram conhecer o lugar de origem dos visitantes. Descobriram que as palavras desconhecidas não eram inúteis naquela terra. Começaram a ver claramente que cada aspecto da cultura do outro era pleno e útil, mesmo que não fosse na sua cultura de origem. E quanto mais suas mentes se abriam ao conhecimento, ao outro, quanto menos ignorância, mais certezas caíam por terra.

6ª fase

Alguns foram morar no país dos visitantes e fizeram uma descoberta aterradora. A língua dos visitantes não era somente tão eficiente quanto a deles, mas mais que isso: no outro país, era mais eficiente. Eles descobriram que a língua deles só era mais eficiente no seu lugar de origem. Que toda cultura que eles tinham seria considerada estranha em outro lugar. Eles agora é que eram os visitantes. E a única certeza que tinham era a de que, no seu país, as coisas funcionavam melhor.

7ª fase

Conheceram a fundo a língua e toda a cultura do outro. Decidiram não ter mais certezas, pois toda certeza que tinham se mostrava facilmente rebatida. E por melhor embasados que estivessem, sempre haveria algo no mundo que poderia questionar suas certezas. Menos ignorantes do que antes, conhecedores da palavra “opinião”, decidiram algo: manteremos algumas de nossas convicções e mudaremos outras. No entanto, não teremos mais certeza de nada, pois o meu ponto de vista nunca será perfeito e sempre estará sujeito a questionamento e a ser derrubado.

E então meu Brasil? Quando nós aqui sairemos da 2ª fase? (Se for ser generoso, talvez até dê para achar que uma parte do povo está beirando a 3ª fase... não muitos, não mais que isso). A língua foi só um exemplo. Neste texto se encaixam língua, variedade linguística, religião, orientação sexual, filiação política etc.

3 comentários:

Márcio Américo disse...

otimo exercicio de "pensar sociologico", pena que poucas pessoas consigam enxergar o obvio, pena que tantos ainda se apeguem a sua "lingua" e alem de ignorar outras, procura cala-las.

Alyson Vilela disse...

Pois é. E a língua foi só um exemplo. Esse texto serve para língua do outro, variedade linguística do outro, religião, orientação sexual, etc.

Maranganha disse...

Esse texto merece uma divulgação das grandes...